No início era o verbo, depois vieram as interrogações
Em seu novo romance, José Saramago cria um herói em conflito contra o poder da palavra
Monica Simas
Será que saberíamos nos reconhecer em sociedade sem a violência sacrificial que estrutura o seu nascimento como relato?
Caim versus Narciso
Coloco a questão porque ela aflora imediatamente ao final da leitura do mais novo romance de José Saramago, Caim. Do epicentro da narrativa bíblica genesíaca até o dilúvio, o caim saramaguiano põe em xeque a retórica perversa de uma espantosa ausência de compromisso relacional, encarnada por outro personagem, deus. Sem levar em conta o efeito que o seu gesto, ou melhor, que a sua palavra provoca nos outros, deus é uma espécie de Narciso grandioso para quem o único aspecto relevante é a sua própria ideia de mundo. E caim, claro, é um sujeito sem lugar, um ser no absurdo da existência, expressão da experiência traumática da humanidade. É um personagem insólito e errante a presenciar a vida cotidiana de Nod, o quase sacrificial momento de Abraão e Isaac, a destruição de Sodoma, a aniquilação dos madianitas, as batalhas de Josué, a queda das cidades, os suplícios de Jó, enfim, uma série de desgraças que são comumente tratadas na propaganda religiosa como histórias exemplares da Graça.
Ao discutir constantemente com deus, caim desvela o absurdo de compreender qualquer texto em sua literalidade, como palavra absoluta; de ouvir sem interrogar, de agir sem duvidar, de compreender o texto arcaico de uma cultura como história universal e única verdade.
Nesse confronto, há uma interpelação contrária ao discurso narcísico em que o ser deus seria pura volição. A determinada altura, aí está uma revelação de fato, ou melhor, da ficção: “(…) a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês creem, um deus não é senhor daquele contínuo quero, posso e mando que se imagina (…)”. Eis o alvo do dedo/deus: o leitor ingênuo, os leitores obedientes, também os que necessitam das catástrofes, e nós, na figura de um leitor implícito, convocados em cumplicidade com o herói caim, que vem pôr abaixo a substituição da humanidade, fundada no repetitivo discurso do Mesmo.
Esse é o caim outro, herói em conflito com o poder da palavra, em viagem da ficção, “ao deus-dará”, como indica o narrador.
Contador de histórias
O herói problemático é uma das marcas da escrita de romances. Também é comum dizer que o romance está naquilo que ele traz além do relato, na superação, portanto, que aparece nas articulações da intriga. Nelas, são criadas as ironias, autoironias, desdéns, escárnios, ambivalências e perplexidades, para gozo e reflexão dos leitores.
Caim não viaja sozinho. Vai acompanhado de um jumento, depois de um burro, estes, sim, estigmatizados não por deus, mas pela própria humanidade, que se considera bastante superior depois de ter se tornado, segundo a expressão do romance, “bípede”. Sem dúvida, o leitor há de soltar umas risadas em meio à seriedade da questão. Há de se divertir em meio ao trágico andamento narrativo. Como já se disse, ele é cúmplice do herói. Viaja com um antigo companheiro, um narrador onisciente, autor implícito. Talvez seja este o texto saramaguiano em que mais se nota a sua presença constante em intervenções anacrônicas. E serve, com bastante fidelidade, à ética intelectual do autor. Portanto, aqueles que tomarão contato com a obra de Saramago pela primeira vez poderão conhecê-lo bem, em sua motivação principal com relação à responsabilidade da literatura.
Contar histórias, afinal, é algo que exige muita habilidade. O herói caim que o diga. Depois de ser lavrador, pedreiro e porteiro, vai se transformar em um contador de histórias e, como Xerazade, sobreviver à rainha Lilith às custas da sedução. Porém, ele sabe que não poderia contá-las a mais ninguém, porque, se o fizesse, ninguém iria crer nele. Aqui, uma pequena amostra de como Caim vem nos surpreender, no avesso do avesso das verdades.
Outras agudas percepções vêm do intrincado jogo relacional de intertextualidades épicas e de intratextualidades nem sempre óbvias. Muitos certamente vão ligar, de imediato, este romance a Evangelho segundo Jesus Cristo, mas, para as delícias do leitor cúmplice, existem outras inferências; há um eco qualquer nesse caim agricultor que espera pelo dia em que o homem poderá levantar a cabeça e, com os pés cansados, recolher-se debaixo de uma árvore. Assim acontecera com um certo casal de Levantado do Chão; também com Baltasar e Blimunda, em Memorial do Convento. A recalcitrante irreverência de caim não poderia ser aproximada da de Raimundo, quando este põe um “não” naquela História do Cerco de Lisboa? E os estorninhos deste romance? Não estariam eles repetindo o anúncio das catástrofes, tal como já indicavam em Jangada de Pedra? E a cegueira da comunidade? Não seria a mesma, transportada aos dias de hoje, naquele outro livro chamado de “ensaio”? Essas possibilidades, explícitas, sugeridas ou imaginadas nos conduzem ao fascínio da literatura, uma vez que ela só existe por meio de relações.
Trecho
“Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo (…)”
Caim
José Saramago
Cia. das Letras
176 págs.
R$ 36
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