Reimpressões de uma tarde de inverno no MAR
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de novembro de 2021 é “a arte e a educação como meios para combater o racismo”
Esse pequeno ensaio constrói uma prosa afetiva com a obra da artista plástica Rosana Paulino que tive o prazer de conhecer em uma exposição em 2019 no Museu de Arte do Rio (MAR). A artista, através de várias técnicas (colagens, fotografias, desenhos e esculturas), costura a sua ancestralidade de forma delicada e potente, enfatizando o processo de escravização do povo negro e a importância do feminino, seja na sua constituição, seja no seu processo criativo.
Uma reimpressão feita por uma mulher que, por sua vez, também recupera outras mulheres que foram esquecidas/apagadas da história. Desse encontro, vou focar o meu olhar em algumas de suas obras. A primeira, intitulada Parede da memória, e em seguida o trabalho de uma série chamada Bastidores.
Em Parede da memória, a artista trabalha com fotografias antigas dos seus familiares. As fotos de mulheres, homens e crianças foram impressas em tecido e costuradas na forma de 1500 pequenos patuás. Os registros em preto e branco ganham nuances de cores em aquarela, técnica antiga de colorir retratos. Muitas vezes as fotos são repetidas, sinalizando a dificuldade da artista em resgatar os registros dos seus antepassados.
A obra já ocupou a parede de vários museus, furando esses espaços que foram por muito tempo vedados às mulheres, ainda mais se considero as mulheres negras. Isso me fez lembrar Anne Carson (2015), citando Samuel Beckett, expressando o desejo da linguagem em fazer furos até que escorra para o lado de cá o que se esconde e precisa escorrer para fora. Rosana faz furos na sua história e convida a sentir/pensar o que escorre por detrás deles.
Reimprimindo os seus, os meus, os nossos fantasmas, trabalha, a um só tempo, com a memória pessoal e coletiva. A obra ressalta a singularidade de cada rosto e, quando juntas nesse grande mural, traz de volta o processo de colonização, rememorando também a história mais ampla da formação brasileira. Os 1500 patuás remetem à data de descoberta do Brasil que, ao ser inscrita por outros olhos, corresponde à invasão portuguesa às terras dos povos originários e à diáspora africana.
Ao mesmo tempo em que olhamos a obra, ela também nos olha, trazendo para o agora, tanto os anseios pessoais que foram perdidos, quanto as lutas dos povos escravizados. A tinta branca opressora da parede abre-se aos buracos, ao esquecido. Nessa abertura, está presente não só o que ocorreu, mas também o que poderia ter ocorrido, trazendo a possibilidade de um outro futuro, nem que seja num lampejo, como diz Walter Benjamin.
As opressões impressas nesses corpos são reimpressas nessas pequenas almofadas, patuás, amuletos de proteção. Com isso, Rosana Paulino dá aconchego a essas figuras que ao serem rememoradas trazem sorte. Isso me lembra um provérbio dos povos de língua Akan que tem como símbolo um pássaro, o Sankofa. Esse pássaro voa para frente, mas sua cabeça está virada para trás e carrega no bico um ovo. Ressalta a importância de retornar ao passado para ressignificar o presente e a possibilidade de construir o futuro.
O ovo trazido por Paulina associa-se à presença do feminino como elemento constituinte da criação. Feminino pensado como o revés da razão ocidental, onde intuição, sofrimento, entre outros sentimentos, são trazidos à tona como potência artística. A obra faz um retorno ao passado e com os patuás traz um esperançar.
Na série de trabalhos Bastidores, fotos e costura também se fazem presentes, dando visibilidade aos corpos das mulheres negras. Quando Debret pinta a Casa Grande, os corpos negros aparecem em segundo plano, nos bastidores. Rosana estica a tela novamente utilizando como moldura objetos usados no bordado que fixam o pano para facilitar a costura.
Nesses trabalhos, parte dos rostos (olhos, bocas e narizes) são suturados, sublinhando a proibição de suas expressões. Vem à mente a máscara de folha-de-flandres que, como descreve Machado de Assis, fazia o escravizado perder o vício da embriaguez. Como ressalta Grada Quilomba (2019), mais do que impedir que bebessem ou comessem o que não era permitido, silenciava as suas vozes e incorporava o medo.
Paulino traz à tona os vários pontos fincados nas peles negras pelos sinhôs e sinhás. Uma Penélope negra que ao invés de desmanchar os fios da história, reforça pontos e traços, dando visibilidade às partes e cobrando reparação. Em suas palavras: “O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e, principalmente, para a sua condição no mundo” (Paulino apud Buarque de Hollanda, 2020, p. 358).
Os nós na garganta gritam no presente, trazendo as vozes de ontem e de hoje numa dupla tentativa de libertação. Divido com vocês essas vozes que chegaram por aqui em navios e que pelas mãos de Rosana Paulino tecem fortes afetos. Rememorações na quarentena de uma tarde de inverno no MAR.
Anna Violeta Durão nasceu no Rio de Janeiro em 1962, trabalha
como pesquisadora/professora da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio/Fiocruz. Nos últimos anos, vem dando vazão à
sua escrita poética. Publicou alguns poemas na Revista Torquato,
O vivo no vivo (Urutau, 2021) e Antígona morreu então preciso
falar com você (Hecatombe, 2021). Esse último junto com o
coletivo de poesia Oficina Matéria-Prima.