A pulsão de Freud a Benjamin
Com sua filha, Anna Freud, em San Martino di Castrozza, Itália, 1913
Em seu conhecido livro sobre a questão da tradução de Freud – As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões (1999) –, Paulo César de Souza considera a tradução francesa de Trieb por pulsion como uma resposta a uma “‘biologização’ injustificável” que a tradução inglesa do mesmo termo por instinct provocou. Tal resposta, continua o autor, passou a ser adotada também “nas outras línguas latinas em que se traduziu (ou retraduziu) a obra de Freud”, para concluir que “é significativo o fato de ‘pulsão’ ter vindo a predominar na psicanálise francesa, sob a égide de Jacques Lacan”. As traduções, seja a inglesa de James Strachey, sob o comando de Ernest Jones, seja a francesa, coordenada por Jean Laplanche, estariam, assim, dependentes das perspectivas teóricas e do ambiente cultural de onde surgiram. Sabemos que o próprio Freud, em uma célebre carta, legitimou a tradução inglesa. O interessante é que, em geral, se lê essa carta inteiramente descontextualizada: se aceita, sem mais, a “sinceridade” de Freud, ignorando as circunstâncias, fartamente documentadas na história da psicanálise, que quase sempre o levavam a “agradar” os britânicos. Deixa-se inteiramente de lado o modo pessoal com que Freud conduziu a “política” no interior da associação psicanalítica por ele criada. Uma aliança que, não podemos deixar de reconhecer, o salvou num momento extremamente delicado, pois desde a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, as leis antijudaicas vigentes na Alemanha passaram a valer automaticamente na Áustria.
Eu gostaria de colocar em questão esta ideia geral e bastante difundida para mostrar que, antes de Lacan, em pelo menos um texto publicado na França, a tradução de Trieb por pulsion – ou melhor, do adjetivo substantivado Triebhaft por pulsionnel – já existia. Trata-se da versão francesa do famoso texto de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1935). Isso me dará a oportunidade para colocar a questão das relações entre tradução, ética e política.
Esse texto de Benjamin possui quatro versões, escritas entre 1935 e 1939: três delas em alemão e mais uma, a versão francesa, traduzida por Pierre Klossowski. Com um detalhe importantíssimo: essa versão francesa foi a única publicada enquanto Benjamin ainda vivia, no número de 1936 da Revista de Pesquisa Social, órgão de divulgação das pesquisas realizadas pelo famoso Instituto de Pesquisa Social, cujo diretor, à época já no exílio americano, era Max Horkheimer. Na ocasião – detalhe importante – Benjamin vivia em Paris como exilado sem pátria, pois já havia perdido a cidadania alemã por ser judeu e de “esquerda”.
Deixemos de lado as diversas vicissitudes pelas quais passaram os textos de Walter Benjamin escritos no exílio, em especial as frequentes polêmicas com Adorno. Deixemos de lado, especialmente, as polêmicas em torno do texto ao qual nos referimos, e que foi objeto de farta documentação e infindáveis comentários (refiro-me, por exemplo, aos comentários e à documentação que se encontram nos volumes 1-3 dos Gesammelte Schriften, de Walter Benjamin. Ou ainda, à correspondência entre Benjamin e Adorno, publicada em português pela Editora Unesp. Enfim, à edição crítica específica desse texto, organizada por Detlev Schötker e publicada pela Suhrkamp em 2009).
“Inconsciente ótico”
Em todas as versões de seu ensaio, Benjamin mantém e desenvolve uma ideia que surgiu alguns anos antes, em 1931, em “Pequena história da fotografia”. Nesse texto, ele propôs o conceito de “inconsciente ótico” (Optische-Unbewussten) a partir de uma comparação com o “inconsciente pulsional” (Triebhaft-Unbewussten) da psicanálise. O enjeu da argumentação é o seguinte: interessado em compreender as profundas mudanças introduzidas na percepção humana pelos avanços da técnica, Benjamin procura mostrar a diferença, na relação entre homem e natureza, entre a percepção sensível, em especial a visão, e esta mesma percepção a partir das transformações por ela sofridas, devido a determinados aparatos técnicos, em especial o fotográfico. A percepção sensível, diz ele, percorre os espaços naturais, guiada pela consciência. A percepção por meio da técnica, por sua vez, percorre os mesmos espaços inconscientemente, ou seja, enquanto no primeiro caso o olhar é guiado por quem olha, pelo “sujeito da consciência”, no segundo, o olhar não é mais o do sujeito, mas o da câmera, a qual, por meio de suas funções de ampliação e redução, trabalha independentemente do olho e para além ou aquém dele, isto é, como se fosse “inconsciente”. Daí, por exemplo, a “inquietante estranheza” que pode tomar conta de nós, quando estamos diante de nossas fotografias antigas, uma vez que ao mesmo tempo nos reconhecemos e nos desconhecemos nelas. Ou ainda, quando nos surpreendemos com o que vemos numa fotografia, que “trai” inteiramente nossos objetivos conscientes e pré-determinados.
Benjamin retoma e amplia as relações que o próprio Freud fizera em passagem célebre do sexto capítulo de A interpretação dos sonhos (1900), entre o funcionamento do inconsciente e o de certos aparatos técnicos como o telescópio, o microscópio e o aparelho fotográfico. O caráter “metapsicológico” desse capítulo nos instrui o suficiente para entendermos que tal comparação coloca em primeiro plano não o caráter mecânico desses aparelhos, mas sim seu caráter dinâmico, isto é, a relação estabelecida entre eles e seu operador, seja um cientista, um técnico ou um fotógrafo. Benjamin amplia a posição de Freud em dois aspectos: primeiro, por uma redução paradoxal, mas necessária, uma vez que se refere apenas à máquina fotográfica, isso porque um de seus objetivos é problematizar a questão do “rosto” humano, mostrando a passagem da ideia de “retrato” (Porträt) para a de “imagem” (Bild). Segundo, porque para ele o funcionamento do “olho” da câmera obedece inteiramente ao aparelho, independentemente do operador, para mostrar o caráter de autonomia que adquirem nossas invenções técnicas. Isso nos permite compreender em toda sua extensão e radicalidade as palavras com as quais ele encerra seu argumento: Von diesem Optisch-Unbewussten erfährt er erst durch sie, wie von dem Triebhaft-Unbewussten durch die Psychoanalyse (“É, antes, por meio da fotografia que ficamos sabendo do inconsciente ótico, da mesma maneira que, por meio da psicanálise, ficamos sabendo do inconsciente pulsional”).
Essa ideia é retomada por Benjamin no ensaio sobre a obra de arte, em todas as suas versões. A questão é a mesma, só que agora a comparação se dá entre o olho humano e a câmera cinematográfica e não mais com a fotográfica. Benjamin repete praticamente as mesmas palavras de “Pequena história da fotografia”.
Trieb freudiano
“A obra de arte…” foi o primeiro texto de Benjamin publicado no Brasil. Mas foi apenas em 1985, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet da primeira versão do ensaio para o volume inicial das Obras escolhidas, publicadas pela Brasiliense, que ficamos diante da tradução do Triebhaft como “pulsional”. O leitor apressado é levado a atribuir a escolha do tradutor às mudanças ocorridas na recepção brasileira da psicanálise, em dois aspectos bem precisos: a ampla divulgação entre nós do Vocabulário da psicanálise (1970), de Laplanche e Pontalis, que consagrava o termo “pulsão”, assim como a expansão das escolas lacanianas no Brasil e sua presença cada vez maior nos meios acadêmicos. Neste sentido, Paulo César de Souza tem razão ao relacionar tradução, perspectivas teóricas e contextos culturais. Mas não será este o princípio e o problema de toda e qualquer tradução? De minha parte, prefiro atribuir a posição de Rouanet a um fato bem simples: profundo conhecedor da obra de Benjamin, ele optou pela tradução pela qual o próprio Benjamin já havia optado.
A tradução de Klossowski para a versão francesa do ensaio sobre a obra de arte é bem clara: C’est elle qui nous initie à l’inconscient optique comme la psychanalyse à l’inconscient pulsionnel (“É a câmera que nos inicia ao inconsciente ótico como a psicanálise ao inconsciente pulsional”). Com isso, já podemos então ver que Pierre Klossowski, com a anuência de Benjamin, traduzia Triebhaft por pulsionnel. A documentação à qual podemos ter acesso hoje em dia confirma que, embora o trabalho de tradução tenha sido penoso para ambos, Benjamin deu seu aval à tradução de Klossowski. Trata-se de uma situação bem diferente da que envolvia Freud e seu tradutor inglês. Digo isso porque é possível objetar à minha posição o fato de que Benjamin também poderia ter aceitado a tradução de Klossowski porque sua condição de expatriado não lhe dava muita margem de manobra. Ou ainda porque precisava do auxílio financeiro como colaborador, que recebia do Instituto de Pesquisa Social e que era fundamental para sua sobrevivência mínima naquela época.
Em que a posição de Benjamin era diferente? Por que, ao contrário de Freud, estamos mais seguros, neste caso específico, de sua “sinceridade”? Vou justificar minha posição apresentando dois motivos: 1) enquanto a recepção francesa da psicanálise na época oscilava entre a recepção literária e no campo das artes em geral (o surrealismo como o maior exemplo) e a psiquiátrica – estou aceitando aqui a tese de Elisabeth Roudinesco em seu estudo sobre a história da psicanálise na França –, Benjamin vinha de outra discussão, daquela que ele partilhava com os membros do Instituto de Pesquisa Social, principalmente com Adorno e Horkheimer, qual seja, de que a psicanálise era uma arma importante e decisiva no combate ao positivismo que tentava dominar a própria filosofia, por meio, por exemplo, do Círculo de Viena, ou ainda no combate às filosofias da existência (Heidegger e Jaspers, por exemplo, na Alemanha). Essas críticas se encontram bem colocadas na aula inaugural de Adorno na Universidade de Frankfurt em 1931, intitulada “A atualidade da filosofia”, largamente inspirada, como sabemos, em Walter Benjamin; 2) Benjamin tomou conhecimento da teoria freudiana muito cedo, desde a época da universidade, de sua participação no Movimento de Juventude, antes da Primeira Guerra; na época de seu doutorado na Universidade de Berna, na Suíça, frequentou seminários sobre Freud e a partir de 1928 seu interesse pela psicanálise não só aumentou, como também começou a se cristalizar em alguns ensaios importantes, seja nas suas reflexões sobre Proust (Além do princípio do prazer, dizia ele, era um comentário indispensável à Recherche… proustiana) ou ainda naquelas sobre os brinquedos e jogos infantis. Em outras palavras, Benjamin tinha plenas condições de avaliar o sentido que o Trieb freudiano poderia ter numa língua, a francesa, que ele conhecia muito bem.
Reunindo esses dois aspectos, poderíamos dizer que, em última instância, a psicanálise colocava em jogo, de um modo bastante radical, a própria ideia de filosofia e, com isso, os seus alicerces antropológicos. A concepção freudiana de inconsciente se tornava, desse modo, um caminho fértil para o entendimento das profundas transformações sofridas pela percepção humana num mundo cada vez mais dominado pela técnica, contribuindo de maneira decisiva para os processos de “desauratização”, cuja análise foi uma das tarefas fundamentais da atividade de Benjamin como crítico da cultura nos anos 1930. Vou ainda mais longe: para Benjamin, não se tratava apenas de uma escolha teórica, mas conectada com um preciso contexto político, o da ascensão do nazismo. Familiarizado com a teoria freudiana da sexualidade, tal como os Proust-Papiere claramente mostram, Benjamin poderia muito bem aceitar sem restrições uma das afirmações mais importantes de Michel Foucault em páginas decisivas do primeiro volume da História da sexualidade (1976), segundo a qual a psicanálise só pôde se constituir em efetiva resistência ao nazismo justamente por opor-se às teorias da degenerescência. Ora, o imensurável valor dessa resistência é incompatível com a tradução de Trieb por instinto.
Todos sabem que Benjamin formulou uma complexa teoria da tradução. O que o seu assentimento à tradução dessa passagem de seu texto destaca explicitamente nessa complexidade é, me parece, a relação entre tradução, ética e política. Do ponto de vista ético, isso significa não apenas que não se pode traduzir de qualquer jeito, mas que o famoso “traduzir é trair” supõe, antes de tudo, renunciar a qualquer pretensão de reproduzir fielmente uma língua em outra, renúncia a uma espécie de identificação primária, que revelaria, entre outras coisas, uma relação da ordem do ideal, sagrada, com o texto a ser traduzido. Mas essa posição ética se complementa necessariamente com outra, que é política, ao supor que uma tradução não pode ser indiferente ou neutra em relação aos contextos, dos quais ela não é apenas dependente, reprodutora, mas também contra os quais ela pode resistir e se posicionar.
E qual é o “nosso” contexto, o que nos assola e bate diariamente à nossa porta, invade nossas casas e se instaura no nosso cotidiano? É um contexto cada vez mais neuronal, cognitivo, biologizante, normativo na medida em que, explícita ou implicitamente, se refere a uma ordem que é da “natureza”, contexto de esvaziamento de qualquer subjetividade. Um contexto em que uma teoria do psiquismo passa a ser vista como uma espécie de estágio pré-científico a ser definitivamente superado pelas conquistas da ciência, a única verdadeira, a que comprova, trata e cura. Nessa perspectiva, Trieb por “pulsão” não é apenas uma tradução válida e legítima em relação ao contexto teórico, mas continua cumprindo muito bem sua função de resistência em um contexto político que procura sempre desqualificar a psicanálise. Não apenas o texto freudiano, a teoria, mas igualmente sua prática, sua intervenção institucional, sua inserção nas lutas no interior das discussões sobre as políticas públicas para a saúde ou, ainda, nos fóruns importantes de discussão da violência urbana, sexual, sem contar, evidentemente, as relativas à saúde mental e ao uso de drogas. O objetivo último desse combate é, sem dúvida, eliminar o que insiste em resistir, ou seja, a “pulsão”.
Texto originalmente publicado na edição 181, julho/2013
Ernani Chaves é doutor em Filosofia pela USP e professor titular da Faculdade de Filosofia da UFPA