A psicanálise no campo da educação: primeiras experiências

A psicanálise no campo da educação: primeiras experiências
(Foto: Wellcome Collection)

 

Neste momento em que no Brasil está sendo regulamentada a Lei nº 13.935/2019, que determina que profissionais de psicologia estarão presentes na rede pública de ensino, é oportuna a revisitação da relação centenária da psicanálise com a educação. Vale a pena darmos uma olhada, sobretudo, no início do encontro dos dois ofícios, para que se conheçam as raízes por onde a interação se fundou, o que a motivou e como essa base pode nos dar as diretrizes para o que temos a aprender com ela. O próprio Freud esteve envolvido nesses princípios se não apenas por suas preocupações políticas e seu entusiasmo para tornar a psicanálise presente na cultura, em vários países, também pela conceituação psicanalítica mesma, que tem no estudo da infância um dos seus pilares.

Dois pontos fundamentais podem ser reconhecidos na criação do espaço de interseção das duas disciplinas. De um lado, a teoria da sexualidade infantil acompanhada do conceito de uma pulsão a que é preciso renunciar para que a vida em sociedade se torne digna de ser vivida. Essa renúncia requer em grande parte a incidência da educação para que seja efetivada. De outro, a introdução das práticas psicanalíticas em âmbitos que ultrapassam o paciente individual nas enfermarias hospitalares, onde nasceu. Tratou-se para Freud de fazer avançar o alcance dos procedimentos analíticos, não apenas em face dos dramas vividos durante a guerra, mas tendo em vista o que então se apresentava como os objetivos da social-democracia que se instalava nas sociedades europeias pós-Primeira Guerra. E aí se encontravam as escolas e as instituições de cuidados de crianças e jovens em situação de abandono ou do que se chamava então de delinquência.

O fato de Freud ser chamado a prefaciar a obra Juventude abandonada, de August Aichhorn, aponta e confirma a observação que fez naquele ano de 1925, que entre as articulações que a psicanálise estabelece, “nenhuma parece ter suscitado tanto interesse, sustentado tantas esperanças e atraído, em consequência, tantos pesquisadores competentes, quanto a aplicação à teoria e à prática da educação”. Aichhorn, segundo Rose Gurski, no preâmbulo do dossiê sobre o autor, publicado na Revista Sig em 2016, é considerado precursor, um dos primeiros no campo que à época se instalava.

Como Freud afirmou naquele prólogo, a criança havia se tornado objeto principal da investigação e da prática psicanalíticas. A sexualidade infantil está presente em todas as fases da vida, expressando-se nos sonhos, na arte e na vida amorosa. Para Freud, a criança e o infantil passavam a referir-se à própria estrutura pulsional como organização psíquica. A partir dessas primeiras constatações, pode-se firmar a configuração atual do vasto campo de estudos e de práticas que articulam as duas áreas da educação e da psicanálise. Sua característica mais relevante certamente foi o fato de ambas contribuírem para uma concepção de vida e de sujeito que não fosse reduzida ao desenvolvimento de processos básicos, declinados em termos de competências e habilidades. A conceituação do sexual e do afeto constituintes do sujeito do desejo e, acima de tudo, a concepção de inconsciente introduzida pela psicanálise abriram um espaço que fez avançar o campo da educação lato sensu, com repercussões fundamentais também na educação escolar propriamente.

É interessante, neste ponto, situarmos os investimentos primeiros da psicanálise no que se refere à educação num contexto mais amplo que, em geral, é esquecido na história do movimento psicanalítico. Em seu livro de 2019, As clínicas públicas de Freud (Perspectiva), a historiadora Elizabeth Ann Danto mostra de que forma, incentivada pelo próprio Freud, uma rede de clínicas psicanalíticas gratuitas se formou em vários países europeus, como resultado do que emergia da nova realidade social. A política de bem-estar social passou a ser uma preocupação constante de um governo socialista como o que vigorava na Viena Vermelha, a Áustria pós-imperial, e Freud estava determinado a fazer daí um lugar para a psicanálise. Conforme lembra a autora, o inventor da psicanálise previu, em 1918, que a “consciência da sociedade irá despertar”. Isto fez com que se reconhecesse o direito à assistência para todos, independentemente da condição econômica e social. Assistência que não se limitou ao cuidado do corpo, mas se estendeu também para o tratamento da mente.

Tratou-se, igualmente, da extensão da psicanálise a esferas a que parecia não estar destinada. E aqui, quase um capítulo à parte é escrito sobre as relações da psicanálise com a educação. Ainda segundo Danto, Aichhorn, assim como outros educadores e psicanalistas da primeira e da segunda geração, entre 1920 e 1938, realizou trabalhos e ações com crianças de rua abandonadas, em abrigos, e com jovens e adolescentes negligenciados. Anna Freud, Sandor Ferenczi, Eric Fromm, Bruno Bettelheim, Karen Horney, Melanie Klein, entre outros, se mostraram preocupados não apenas com questões teóricas, mas igualmente com questões práticas relacionadas à educação.

Um novo cenário, no entanto, parece se instalar quando Aichhorn e Anna Freud, levando a descoberta freudiana à Viena Vermelha, encontraram o jovem educador Siegfried Bernfeld e com ele criaram novas escolas cuja direção era dada pela teoria psicanalítica. Bernfeld, que era fascinado pela psicanálise e inteiramente convencido de que a repressão sexual obstaculizava o pleno desenvolvimento da criança, fundou um jardim de infância modelo, o Lar da Criança Desamparada, instituição destinada a receber crianças judias órfãs de guerra. Além disso, era dedicado ao trabalho de inventar com seus colegas os mais diferentes dispositivos para fortalecer as articulações da psicanálise com os campos da educação e da pedagogia de modo a encontrar soluções para o sofrimento e desenvolvimento dos jovens desfavorecidos socialmente. Os diálogos entre os psicanalistas e educadores se fortaleceram: foram fundados cursos de orientação psicanalítica para os educadores, aos quais tinham acesso professores das creches e das escolas primárias e municipais. Palestras oferecidas a esse mesmo público foram editadas na Revista de Pedagogia Psicanalítica, fundada em 1926.

Mas o mais fecundo dos laboratórios de estudos interdisciplinares entre educação e psicanálise talvez tenha ocorrido na Palestina inglesa e mais tarde no início do Estado de Israel, mais particularmente no Kibutz. O interessante livro de Guido Liebermann, de 2017, Freud en el Kibutz: psicoanalisis y educacion colectiva (Aurora), registra a história do que foi uma experiência radicalmente nova ligando as duas disciplinas. A sociedade kibutziana, fundada sobre a abolição da ideia de propriedade privada, proporcionou modelos de funcionamento econômico, social e educativo inteiramente opostos à sociedade capitalista. Em tese, o kibutz seria responsável pelos seus membros e a educação coletiva apontou para a criação permanente de outros laços sociais que não apenas o da família nuclear.

Outro livro de Liebermann, de 2019, A psicanálise em Israel: sobre as origens do movimento freudiano na Palestina britânica (Anna Blumme), revela que entre os primeiros a chegarem durante a segunda onda migratória na Palestina inglesa, estava Montague David Eder, diplomata e psicanalista. Ele adotou, como ponto de partida de seu trabalho, atendimentos psicanalíticos às crianças órfãs de guerra. Sublinhe-se que essa prática constituiu uma verdadeira estratégia de intervenção da psicanálise na esfera pública.

É interessante observar que, ao mesmo tempo em que esses pioneiros lutavam para implantar o método psicanalítico e fundar o primeiro grupo de trabalho voltado para a psicanálise, estavam, com este grupo, incidindo diretamente no campo social, uma vez que tinham participação ativa no objetivo de retirar a Palestina da miséria e do atraso. Foi neste ambiente que alguns psicanalistas e pedagogos tomaram para si a transmissão das ideias de Freud e as que Bernfeld havia desenvolvido na experiência do Lar da Criança Desamparada.

A experiência de Bernfeld no Kinderheim, registrada em seu livro O povo judeu e sua juventude (1919), permaneceu sendo uma das maiores referências do trabalho para os pedagogos socialistas da Palestina. Bernfeld soube exercer a arte de se manter fiel ao aforisma psicanalítico, de que educar, curar e governar são três ofícios impossíveis. E sabemos que naquilo que tange à educação, Freud sempre sublinhou a precariedade inevitável de todo o ato educativo e do incerto caminho do sujeito ao longo de sua educação. Todo o trabalho de Bernfeld permaneceu sendo uma referência para os pedagogos e psicanalistas freudianos, que se destacavam pela tomada de posição oposta àqueles outros que insistiam em manter a pretensão pedagógica de impor um ideal educativo a crianças e jovens. A educação e a pedagogia da criança nascida e educada num kibutz constituíram um acontecimento primordial na história da psicanálise na Palestina e, de certa maneira, na história da difusão da própria psicanálise.

Ademais, a experiência implantada nos kibbutzim é de grande interesse, porque ressalta a profícua articulação entre pedagogia e psicanálise. Produziu efeitos históricos importantes e desestabilizou pressupostos teóricos, amplificando, assim, a sonoridade da conjunção “e” na formação do humano. Um expediente absolutamente de acordo com o pensamento de Freud, na medida em que ele ignorava as contradições excludentes e as distinções rigorosas da lógica aristotélica – os “nãos”, e os “ous” –, para fazer valer, na construção de sua teoria, a conjunção “e”. Próximo à linguagem dos sonhos, bem como da modalidade de expressão das línguas primitivas, o pensamento freudiano se apresentou como uma sucessão de ideias que acabaram por abrigar, na própria malha daquilo que teceram, a coincidência de opostos. Esse é o lado unheimilich da experiência transgressora que os jovens educadores, psicanalistas e ideólogos das aldeias agrícolas plantaram nas terras que os receberam em fuga das perseguições milenares. O sujeito é estrangeiro de si mesmo, sujeito exilado, desenraizado, constituído pelo desconhecimento enigmático da dimensão inconsciente.

Quando, nos dias atuais, na sociedade brasileira, observamos os desdobramentos incontáveis e efetivos do que foram os investimentos fundadores da psicanálise na área da educação, é importante voltarmos a experiências pioneiras como estas. Uma volta aos precursores nos fornece um testemunho que aponta para a nossa responsabilidade na sustentação desta relação, com suas incidências políticas, que certamente enriquece e torna efetivas as ações nos campos que ela toca.

Betty Bernardo Fuks é psicanalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida.

Anna Carolina Lo Bianco é psicanalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa em Psicanálise: clínica e cultura da UFRGS.


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