As prisões brasileiras já são laboratórios de experimentos macabros
Nas cadeias do país estamos testando o potencial de contaminação e mortalidade do vírus (Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ)
Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto, eis um novo detento
Racionais MC’s
Há poucos dias, Xuxa Meneghel sugeriu que pessoas presas servissem de cobaias para produção de medicamentos e vacinas. Muita gente, mais e melhor do que eu, já apontou o caráter racista e, até mesmo, nazista, da fala da ex-apresentadora infantil, de forma que não preciso me estender neste aspecto.
O que quero destacar hoje é que o discurso de Xuxa não reflete apenas as experiências passadas em campos de concentração na Europa, tampouco se resume a projeções futuristas ao estilo da ficção científica norte-americana.
O discurso da ex-apresentadora é terrivelmente presente: as prisões no Brasil já são laboratórios de experimentos macabros de inflição de dor em nome da pacificação social e da qualidade de vida dentro e fora de seus muros.
Vou aqui destacar dois tempos desconexos dessa história, porém, antes, alerto que utilizo a palavra pacificação para me referir a silenciamento, colonização, controle e produção de morte na imposição e manutenção de uma ordem social. Abaixo do equador, já deveríamos saber que nada de bom vem depois desta palavra.
Quase tudo que se chama de crime organizado no Brasil é produto da administração das prisões. As violências produzidas por coletivos de pessoas que passam a vida entrando e saindo da cadeia são resultado de um imenso experimento de gestão do espaço prisional e que se estendeu às periferias das cidades. Esses coletivos são a terceirização da administração penitenciária e da segurança pública em territórios onde o exercício dessas funções se vê, então, livre de eventuais constrangimentos da legalidade.
Assim é que se produz a pacificação – lá dentro e aqui fora –, pelo recrutamento de agentes da própria comunidade. Toda vez que fico sabendo de algum massacre produzido por “facções” ou “comandos” em cadeias ou periferias desconfio de que se trata de uma política de “controle populacional” do Estado, ao invés da famigerada criminalidade aferida nos relatórios da ciência baseada em evidências como “crime organizado”.
Foram necessários vários experimentos até que essa forma de gestão territorial fosse produzida. Muita comida estragada, com vermes e merda. Muito afogamento, muito pau-de-arara e muito saco na cabeça. Nenhuma condição sanitária. Banho uma vez por semana. Sarna, piolho, tuberculose e sífilis propositalmente não medicadas. Tudo isso, junto e misturado, fez emergir grupos que assumem a administração da violência estatal também como forma de afastar ou amortecer a inflição da dor sobre seus corpos, além, obviamente, de poder negociar melhor a prosperidade de negócios, tão mais lucrativos quanto mais permaneçam ilícitos.
Estamos em 2021, segundo ano da pandemia de Covid-19 e ultrapassamos as três mil mortes diárias. Ao entrar no detalhadíssimo site com dados sobre a pandemia mantido pelo governo de Sergipe, atualizado diariamente, percebo que os experimentos de morte nas prisões seguem seu curso. Desde meados do ano passado, os números estão congelados e marcam que, nas prisões sergipanas, foram realizados 500 testes rápidos, dos quais 13 foram positivos e apenas um resultou em morte. Esse tipo de “estatística” se repete em outros estados da federação, conforme conversei há alguns meses com outros(as) abolicionistas penais em um evento das Frentes Pelo Desencarceramento do Amazonas e de São Paulo.
Se eu fosse a Xuxa, pensaria que as prisões sergipanas ou amazonenses são os lugares mais seguros do Brasil contra a pandemia de Covid-19. Mas como o privilégio da completa ignorância não me foi concedido, sei que estamos presenciando uma nova etapa de experimentos em cobaias humanas.
Neste momento, em várias cadeias do país, lotadas, imundas, abafadas, depredadas, estamos testando o potencial de contaminação e mortalidade do vírus nas condições ambientais mais propícias a um massacre. Ao mesmo tempo, conduzimos testes sobre a capacidade de pacificação que está impedindo a cadeia de virar, mesmo nos períodos prolongados de suspensão de visitas, como o que estamos atravessando neste mês de março.
Tudo na cadeia são experimentos de morte e todos(as) são cobaias. Xuxa não pode ser acusada de originalidade em seu discurso eugenista. Cabe a nós, pessoas munidas de rudimentos de noções democráticas, romper com o silêncio sepulcral que reverbera de dentro para fora das prisões brasileiras neste momento e denunciá-las como laboratório do genocídio que vivemos.
Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia