Potência, inventividade e inteligência periférica

Potência, inventividade e inteligência periférica
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de junho de 2020 é “quarentena”


Já são mais de 100 dias de quarentena em razão do novo coronavírus. Ao longo desse período temos vivenciado, diariamente, notícias assustadoras e dados alarmantes. Nesse cenário devastador o sentimento que assola é o do medo, devido às incertezas do presente e do futuro. E quando olhamos como a pandemia tem afetado as periferias, escancaram-se as desigualdades e a negligência de políticas para a população desses territórios, com destaque para a população negra, que é 62% mais afetada pelos impactos do contexto atual.

Na contramão do medo e das incertezas, uma poderosa rede de apoio da sociedade civil tem se formado em todo o país, como forma de tentar conter os impactos da Covid-19. Aliás, é preciso destacar a potência que emerge das quebradas de todo Brasil. As periferias têm demonstrado, por meio de diferentes iniciativas, toda a sua criatividade, organização e solidariedade. Essa potência periférica tem emergido na forma de parcerias com o setor privado para a realização de campanhas de arrecadação de donativos (doação de alimentos, kits de higiene e limpeza), campanhas de conscientização, cuidados com a saúde física e emocional e fortalecimento da economia local e dos seus empreendedores. Como não há campanhas de comunicação específicas, as periferias e favelas têm buscado alternativas para que as informações tenham efeito junto às populações desses territórios. Com relação à economia local, o que vemos todos os dias são políticas para salvar os grandes empreendimentos, mas não vemos soluções dos governos direcionadas a dar fôlego aos nano e microempreendedores, principalmente dos territórios periféricos. Por outro lado, as periferias têm criado diferentes modelos de fundos de apoio a esses empreendedores, o que pode servir de referência para a criação de políticas públicas com foco na manutenção desses negócios que movimentam a economia local e todo um ecossistema de colaboradores, fornecedores, prestadores de serviços e outros.

Há pequenas e importantes ações espalhadas por todas as quebradas. Destaco algumas: o “Mães da Favela”, liderado pela CUFA, tem o objetivo de proporcionar uma renda mínima de auxílio a milhares de mães residentes em favelas de todo o Brasil; o podcast “Pandemia Sem Neurose” (SP), produzido pelos sites de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não Me Enrola e Periferia em Movimento e a jornalista Gisele Brito; a campanha “Como se proteger do coronavírus?”, produzida pelo Observatório de Favelas (RJ); as duas campanhas mandam o papo reto com criatividade e informam sobre a prevenção, o combate às fake news e as medidas do poder público relacionadas à Covid-19, numa linguagem acessível para a população das periferias e favelas. A health tech AfroSaúde (BA), focada em desenvolver soluções que facilitem o acesso da comunidade negra aos profissionais e serviços de saúde, que criou a iniciativa “Telecorona da Periferia”, e oferece uma rede de apoio às periferias com especialistas em saúde para ajudar a população que vive nas comunidades brasileiras no combate ao novo Coronavírus. Há ainda o “Fundo Volta Por Cima” (SP), aliança do Banco Pérola com a ANIP – Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia, A Banca, FGV EAESP – Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios e Artemísia, que visa conceder empréstimos a juros zero como uma resposta direta ao desafio urgente dos empreendedores de impacto que atuam nas periferias ou com populações empobrecidas, frente à crise imposta pela pandemia, para que possam se manter ativos, garantindo empregos e renda.

Para além dessas ações, as organizações sociais, grupos, coletivos, redes locais e regionais, por meio de seus agentes, empreendedores e lideranças têm criado outras soluções para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. Diante do distanciamento do Estado dos territórios, as periferias têm realizado levantamentos de dados e pesquisas para entender o avanço do coronavírus nessas quebradas. Essa é uma boa oportunidade para abrir diálogos e propor soluções conjuntas com as secretarias de governo em diferentes níveis, numa perspectiva de conseguir escala para as ações nesses territórios. Sabemos que o diálogo com os governos nem sempre é algo simples, mas não podemos perder essa oportunidade. Um exemplo exitoso foi a iniciativa da Coalizão Negra Por Direitos junto ao Ministério da Saúde que, via Lei de Acesso a Informação, conseguiu a divulgação do recorte de raça, gênero e localização nos dados relativos à doença. Assim como os dados divulgados pelos governos, ter acesso aos dados produzidos pelas periferias pode auxiliar a aprofundar o nível de detalhamento dessas informações e contribuir para tornar mais igualitário e eficaz o enfrentamento à pandemia.

Ainda poderia dedicar espaço a outras iniciativas que representam a economia criativa pelas vias do consumo, mídias, cultura e tecnologia, que talvez sejam os setores mais afetados e, com exceção do último, serão aqueles que devem levar mais tempo para se recuperar da crise imposta pela disseminação da doença. Sabemos que o desafio é enorme e que há muito a ser feito. Sabemos também que o diálogo com o poder público é lento e complexo em muitos momentos. Mas a conjuntura pede a ampliação das ações conjuntas e diálogo, principalmente com os governos para a criação de políticas efetivas com escala para essa população.

Entretanto, diante da negligência histórica dos governos, e do enorme desafio que as desigualdades impõem, as periferias e favelas, assim como em outras oportunidades, seguem na vanguarda e abertas à construção coletiva com diferentes setores, assim como em outras épocas da nossa sociedade, inovando e apresentando caminhos e soluções pela sua potência, inventividade e inteligência periférica com propósito. Um salve a todas as quebradas do Brasil!

 

Wagner Silva (Guiné) é cria da periferia, na zona leste, e da escola
pública de São Paulo, pai da Júlia, sociólogo, especialista em
gestão de projetos sociais. Atualmente coordena os apoios e os
fomentos às periferias pela Fundação Tide Setubal.

 

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