Pornografia e eletrodomésticos
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Escrevo esse texto a partir do debate, bom, envolvendo o número da Revista Cult dedicado à pornografia. Parto de uma experiência pessoal. Estive na grande exposição de 2014 sobre Donatien Alphonse, o Marquês de Sade, em Paris no Grand Palais. Ao sair da exposição me deparei com uma pergunta que me dividiu: pornografia ou liberdade de expressão? Creio que antecipava ali uma questão que se tornou crucial para entender a função da internet na vida social e política. Poucos meses depois, no dia 7 de janeiro de 2015, ocorreu o atentado mortal na sede do hebdomadário francês Charlie Hebdo. Entre os 12 mortos estavam 5 dos maiores cartunistas franceses. O Charlie sempre foi alvo de ameaças e perseguições, especialmente da extrema direita. Ele 1sempre teve uma linha abertamente ateia e anticlerical, sempre fez das críticas à religião, e em particular aos fundamentalistas religiosos, um de seus temas preferidos. Obviamente isso lhe valeu incontáveis processos movidos sobretudo por associações cristãs e muçulmanas. O motivo da matança foi o fato de o Charlie ter publicado charges consideradas ofensivas à Maomé.
Os eventos de Paris atualizaram a questão sobre os limites do que pode ser visto e dito em público. Nesse sentido, a exposição do Marquês de Sade, repleta de peças obscenas em um dos prestigiosos museus do mundo, o Grand Palais, sobretudo após a inclusão de Sade nas edições da Plêiade, é a própria legitimação de um espaço que o ocidente, efetivamente, reserva à transgressão e à blasfêmia. Nada disso seria possível em outras épocas.
Da blasfêmia à pornografia o que está em jogo? Mais do que humor ou liberdade de expressão, o que se torna intolerável é o modo de gozar do outro. É fácil aceitarmos a forma de gozar ditada pelo discurso ao qual pertencemos e muito difícil suportar a ideia de que outras pessoas possam gozar diferente. A obra de Sade nos permite inclusive radicalizar a pergunta: gozar de tudo inclui gozar de Deus? Blasfemador, isso não impediu que suas orgias fossem organizadas como verdadeiros rituais litúrgicos. Basta rever 120 dias de Saló, de Pasolini, para constatar o modo como os três círculos que estruturam o filme – o das manias, o das fezes e o do sangue – obedecem a uma sofisticação simbólica digna de uma cerimônia católica.
Para os manifestantes que atravessaram a marcha da praça República em Paris com um lápis nas mãos, em protesto contra o atentado ao Charlie, a obra de Donatien Alphonse coloca um problema. Até seus últimos dias em Charenton, um de seus maiores legados foi, justamente, demonstrar quão íntimas eram sua escrita e sua carne. Após Sade, como ainda acreditar que palavras e desenhos são pura sublimação? Elas podem desencadear uma violência real, que afeta os corpos e vai muito além de uma simbolização.
Pornô para todos
Assim, o calor do debate que se seguiu à publicação da capa da Revista Cult mostra como é difícil abordar a questão da pornografia sem cair nas armadilhas da banalização, da idealização, da mercantilização ou da moralização. Voltemos um pouco na história. Embora elementos da pornografia estejam presentes na cultura desde seus primórdios, é possível localizar no Renascimento as bases das questões que norteiam o estudo da pornografia atual. Sade teve bons precursores. Para a maioria dos estudiosos da pornografia, esta é indissociável da tensão provocada entre o realismo do coito e a moral civilizada. Tomemos uma definição universitária clássica da pornografia: expressões escritas ou visuais que apresentam, sob a forma realista, o comportamento genital ou sexual com a intenção deliberada de violar tabus morais e sociais. Eis o problema para os psicanalistas lacanianos. Como falar de realismo sexual se a relação sexual não existe? O que seria da cópula sem que os parceiros dissessem as frases que, fora do contexto, seriam completamente obscenas ou ridículas?
Ovídio pornográfico?
Para pensarmos o que é a pornografia no mundo atual vale a pena comentar um pouco suas transformações no curso da história. Esta pergunta é feita por Françoise Frontisi a partir do modo como Ovídio, em sua Metamorfose VI, narra a tragédia de Filomela e Procne. O texto nos interessa por trazer elementos para uma distinção entre erotismo e pornografia que podem ser isolados muito cedo na cultura ocidental. Intelectuais pró e contra a pornografia se detiveram na análise da narrativa que faz Ovídio do estupro de Filomela por seu cunhado Tereu. Em seguida, para que esta não contasse o crime, ele decepa sua língua e a mantem encarcerada para uso pessoal. A cena do estupro e a traumática mutilação que condena Filomela ao mutismo, são contadas em detalhes por Ovídio. Estes dois fatos chamam atenção por trazer os elementos que fazem parte dos argumentos de muitas feministas contra a pornografia: a mulher como objeto da violência, sua mudez e o próprio recito ou cena pornográfica como modo da instituição patriarcal reforçar sua opressão sobre as mulheres. Nas Metamorfoses, o argumento ganha fôlego pelo fato de que Ovídio escreveu o estupro de Filomela em um mundo onde a leitura era muito mais acessível aos homens, sendo poucas as mulheres que tinham acesso às letras.
Na tragédia, Tereu paga sua transgressão com a mesma pena de Jasão. Filomela, por meio de um bordado que teceu no cativeiro, consegue enviar uma mensagem à sua irmã Procne que, ao saber do fato, vinga-se do marido matando o próprio filho do casal, Itis, e o servindo como refeição para o pai, a cena foi imortalizada no famoso quadro de Rubens.
A incomunicabilidade entre os dois sexos marca o destino dos personagens. Tereu impõe o seu desejo acima da lei da família. Assim ele pensa poder transformar Filomela em um corpo mudo, puro objeto de gozo. Contudo, para além de sua fantasia masculina, é a loucura feminina e a anulação de sua função paterna ao comer involuntariamente seu próprio filho, que irrompem no real.
Paula Findlem, historiadora de Stanford, afirma que a pornografia, dentro do contexto ocidental, tem suas bases no comércio surgido a partir das novas técnicas de impressão de histórias e desenhos obscenos. Com o renascimento, a escrita deixa de ser um privilégio dos ricos. Mais atrativo do que a Bíblia de Gutemberg, os contos e poesias obscenos passam a ser consumidos em escala cada vez maior pelas populações das novas cidades renascentistas. Dentre tantos textos, os Sonetos Luxuriosos de Pietro Aretino se destacam como os mais representativos de sua época. Aretino pode ser considerado o primeiro pornógrafo moderno. Contudo, se pornografia e comércio caminharam lado a lado – obviamente uma questão de oferta e procura – a internet, com seu império das imagens, introduziu uma verdadeira revolução do conceito. Passamos da pornografia como tecnologia a serviço da fantasia para uma tecnologia de venda do objeto tout court. Passe-se então da transgressão e irreverência de Aretino a um regime de pura adição do objeto olhar. As zonas de tolerância, desde então, não mais estão segregadas em uma editora clandestina, um bordel, um cinema obscuro ou mesmo uma rua. Com a internet, a zona de tolerância passou a ocupar um lugar cativo na casa moderna, tão incontornável quanto qualquer eletrodoméstico. Assim como foi com a geladeira e a televisão, não há mais um lar sem computador com um portal para o universo pornográfico. Em nossa casa guardamos sempre nossas caixinhas de prazeres.
Foi a partir dos anos 70, que o debate sobre a pornografia se tornou mais intenso entre as feministas americanas. As disputas acaloradas centraram-se entre as feministas antipornografia, que denunciavam a condição de exploração e submissão das mulheres nos filmes pornôs, e as feministas “antipuritanas” que viam no sucesso do movimento pornô chic um novo campo de reflexão sobre as minorias sexuais. Até os anos noventa o debate se centrava em torno da nouvelle vague pornô introduzida por filmes como Deep Throat, Emanuelle ou Devil in Misses Jones. Contudo, a expansão do mundo virtual e a hiperconectividade geradas pela revolução digital subverteram de modo definitivo a percepção do que é um espaço público e o que é um espaço privado.
Para o leitor de Lacan, não há uma grande surpresa nessa constatação. A extimidade é de estrutura, e o corte entre o mais íntimo e o mais externo é uma ficção cada vez mais débil em um mundo em que o ceticismo crescente destitui leis e mestres, antes devotados a estabelecer essa separação. A cultura hacker tornou o trabalho do censor um ofício digno da paranoia a mais obstinada. Ainda assim, Weakleaks nos ensinou que nem o mais competente espião está livre de ser espionado. Viva Sartre e seu voyeur vu.
A intimidade perfeita
Ocorre que a internet trabalha a serviço do conforto e dos objetos do bem-estar. A ilusória discrição do ambiente virtual permite que o sujeito goze sem ser muito importunado pelo Outro; à condição, evidentemente, de saber surfar nos bons sites e não perturbar os grandes interditos estabelecidos pelo FBI, como pedofilia, brincadeiras sobre terrorismo ou downloads de filmes de Holywood. Com a internet, reconfigura-se o espaço delimitado pelo Outro social para a transgressão. Das zonas de tolerância onde se situavam os antigos bordeis para o mundo da internet muito mudou. A tecnologia, precisamente, permitiu aproximar essa zona de tolerância do conforto da casa de cada um, tanto das famílias tradicionalmente constituídas como das recompostas, tanto dos pequenos apartamentos dos celibatários até mesmo os ambientes de trabalho. Basta não fazer muito alarde, deixar a mulher dormindo e ir para o quarto ao lado ou esperar o marido ir para o trabalho e as crianças para a escola. É assim que escutamos inúmeros relatos em nossos consultórios. Como num passe de mágica, um clique te leva ao gozo na zona de segregação. Se os textos de Sade eram um impulso à fantasia e expunham o desejo contra naturam inerente a cada um, a pornografia atual não é mais uma máquina de sonhar, ela tonou-se um produto a mais na série de sintomas regidos pelo imperativo “todos adictos”.
A solidão pornográfica
Em nossos consultórios, cada vez mais encontramos casais formados a partir de sites de relacionamento. Nos damos conta de que os encontros virtuais vieram para ficar e não servem apenas para satisfações imediatas. Muitos buscam casamentos, a possibilidade de ter filhos, uma identidade intelectual, etc. Mesmos os mais conservadores capitulam diante das evidências de que verdadeiros casais podem se formar a partir das redes sociais. Muitas das críticas aos encontros virtuais recaem no fato de que o sujeito passa a escolher seu parceiro orientado pelas coordenadas prévias de sua fantasia, ou de seus ideais. Alguém que busque apenas mulheres loiras, não fumantes e que gostem de jazz, deixará isso bem claro na triagem das parceiras. Há pouco espaço, desse modo, para o acaso, a tiquê, tudo se ordenando em torno do monótono automaton da fantasia. Porém, a clínica nos mostra que na vida cotidiana a tiquê tampouco ocorre facilmente. É sempre difícil, aprendemos na clínica, escolher um parceiro por outra via que não seja a lente da fantasia.
Assim, para além da dimensão do encontro possível, quando as redes multimídias conectam os continentes em frações de segundos, interessa-me aquilo que na rede não serve para comunicar. É nessa zona solitária, em que situamos o universo pornográfico, que se produz um número crescente de masturbadores. A pornografia aporta uma representação de conotação sexual que busca suscitar uma excitação em seu público. Contudo, seria no mínimo conservadora essa definição, pois o erotismo e os signos de amor também são veiculados pela rede. Talvez aqui possamos traçar uma distinção entre o erotismo e a pornografia. No erotismo o que prevalece é o que é velado, já na pornografia o que está em jogo é a volúpia das imagens, induzida pela oferta virtual maciça ao alcance dos dedos, e que acaba por desregular o próprio aparelho de gozo fantasmático. O cortejo que faz parte dos encontros em um vai e vem entre alienação e separação perde desse modo sua alternância, deixando o sujeito contemporâneo cada vez mais à mercê do objeto, sempre disponível na prateleira. Como defesa contra a angústia desta presença, o recurso aos sites pornôs oferece uma fantasia prêt-à-porter, dando a ilusão de uma separação virtual entre o sujeito e seus objetos.
A invenção do Porno Chic
Pode parecer um longo salto, na verdade não é. A regra que se aplica ao texto de Ovídio pode ser transposta de outros textos, inclusive os do Marquês de Sade, para a era da fotografia e do cinema. Estamos em plena década de 70, no coração da revolução sexual. Um artigo publicado no New York Times tornou-se um clássico ao definir um movimento que passou a ser chamado de “Porno Chic”. Estrelado pela nova estrela pornô Linda Lovelace, o filme Garganta Profunda alcançou níveis de popularidade e interesse da crítica de arte jamais vistos para um filme X. O filme deflagrou debates acalorados e alçou a pornografia a ambientes inéditos até então. As fronteiras entre arte e pornografia, espaço público e privado, obscenidade e direitos constitucionais foram abaladas e deixaram marcas profundas na percepção da liberação sexual dos anos setenta.
A personagem de Linda – que no filme também se chamava Linda – era uma mulher frustrada sexualmente até que seu ginecologista descobre que ela havia nascido com o clitóris na garganta. As longas cenas de felação, contudo, obedeciam a um roteiro construído de forma inédita para a indústria pornográfica da época, uma trilha sonora empolgante e tiradas de humor melhores do que muitos filmes de humor convencionais. Dois grupos imediatamente se opuseram no meio intelectual. Alguns viam em Linda o protótipo da mulher liberada, não submissa às normas da família americana, em busca de seu próprio prazer. O clitóris na garganta deslocava de vez a questão do prazer feminino atrelado à via de reprodução, a vagina, e indiretamente expôs uma inédita forma de separar a mãe da mulher. Outros, sobretudo grande parte das feministas, condenavam o filme pornô como normatizador da fantasia masculina de submissão da mulher. Trata-se aqui de um debate muito mais amplo sobre a pornografia. Para Andrew Sarris, crítico do Village Voice, Garganta profunda ainda mostra apenas órgãos sexuais soltos, e os seres humanos atrelados a eles se perderam na via que os leva ao orgasmo.
O destino da atriz Linda Lovelace apontou muito mais para o segundo grupo. Em sua autobiografia, Ordeal, a atriz narra sua história de submissão ao marido Chuck Trainor, que a obrigou a fazer filmes pornográficos e, após a celebridade, se prostituir. Para muitos, a história de Linda é o argumento maior de que a pornografia causa danos às mulheres, tanto na sua imagem quanto no seu papel social. Entende-se, consequentemente, o fascínio da América por sua redenção. Linda passou a encarnar a mulher que foi obrigada, pela indústria pornográfica, a ocupar o papel que lhe era imposto pelo universo masculino.
Seu arrependimento, contudo, não deixou de ser ambíguo para a cultura dos anos setenta. Ele pode ser visto tanto como libertação quanto retrocesso. A personagem Linda se aproxima muito mais da questão feminina do que a própria atriz. Linda, a mulher, terminou seus dias como uma dona de casa e mãe de família. Suas aparições se resumiram a talk shows em que narrava sua cruzada anti-pornografia. Já a personagem Linda acaba o filme realizada sexualmente, dona do mapa que lhe leva ao prazer. Que o clitóris na história esteja em outra parte é perfeitamente compatível com a tese lacaniana de que o corpo feminino é montado em peças avulsas na fantasia masculina.
O Porno Chic, contudo, foi mais além ao interrogar as relações entre Arte e Pornografia. Deep Throat foi assistido e apreciado por celebridades como Andy Warhol e Truman Capote. Aqui a literatura é bastante vasta, mas a perspectiva de superpor o pornográfico ao conceito de erotismo parece insuficiente. Após Duchamps, estamos seguros de que tudo pode virar arte. Recentemente o aluno Clayton Pettet, da Central St Martins School, Universidade de Artes de Londres, desencadeou um debate planetário quando propôs, como trabalho de conclusão de curso, perder sua virgindade anal em uma performance pública. Contudo, é precisamente a convocação do terceiro, no caso, o público, que pode servir como distinção entre o que é uma performance e o que é parte do circuito acéfalo da pulsão. Ou seja, do Porno Chic à performance Clayton, há o esforço de inscrever no campo do Outro o que há de mais solitário na fantasia.
Bartel sustenta que a Arte pode investir na Pornografia, mas que as funções são sempre distintas. Se, por um lado, não houve nenhuma dificuldade em reconhecer a afinidade do erotismo com a arte, a pornografia elevada à dignidade da arte coloca em questão justamente o conceito de sublimação freudiano. Nesse sentido, o pornográfico é o que passa para o campo do Outro como fracasso da sublimação.
A pornografia da vida cotidiana
Os destinos do circuito pulsional, modulados pelo espírito de cada época, podem servir como base para distinguir o que, desse curto circuito da fantasia, é pornografia e o que é erotismo. Com Lacan, é possível um esforço de conceituação do pornográfico a partir da topologia do objeto do desejo. Na clínica, o que se observa é que a pornografia é fundamentalmente uma questão masculina. Daí a dificuldade que se tinha em mulher no universo pornográfico para além de sua condição de objeto. Contudo, o espaço dos filmes pornô vem sendo ocupado cada vez mais por diretoras mulheres, e filmes pornô destinados às mulheres. Enfim, não é possível dizer que a pornografia apenas reitera a solidão na masturbação, mesmo porque a masturbação feminina ganhou um espaço inédito no modo como as mulheres se apropriam do seu corpo. O corpo sempre será outro para nós mesmos, portanto a masturbação sempre pode levar a novas descobertas do continente oculto corporal. Impensável em outras décadas, hoje é bastante comum um chá entre amigas para comprar ou descobrir novos toys para obtenção do prazer. Na clínica é possível observar que a pornografia, que ganhou escala planetária com a internet, pode por um lado fixar o sujeito em sua fantasia masculina, mas pode também ser justamente um modo de sair da posição de objeto dessa fantasia. Assim, podemos propor que a passagem da pornografia ao erotismo se dá quando o objeto, ao invés de obturar, faz furo na tela. Será que podemos marcar a cultura de nosso tempo como pornográfica? Ou, ao contrário, estamos vivendo um momento em que cada um, reduzido a ser um consumidor de sua pílula diária de pornografia doméstica, se enlaça em uma adição sem dealers? Impossível ter uma resposta conclusiva, pois o modo de gozar do outro é sempre perturbador em qualquer cultura, da mais liberal à mais conservadora.
Marcelo Veras é psicanalista, psiquiatra e professor. Atualmente é coordenador do Programa de Saúde Mental e Bem-Estar da UFBA. Seu mais recente livro é A morte de si: psicanálise e suicídio (Cult, 2023).
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