Por que gostamos de Elena Ferrante?
Especialistas em literatura, psicanalistas, fãs e leitores comentam o que chama a atenção na obra da autora
Fenômeno editorial, Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que vendeu mais de 16 milhões de livros e teve sua obra traduzida para cerca de 48 países. Ela começou o seu trabalho literário com o livro Um amor incômodo, em 1992, mas o sucesso mundial veio com a Tetralogia Napolitana ou Série Napolitana, que teve início em 2011.
No entanto, a sua verdadeira identidade ainda é um mistério e, por isso, não se pode nem ao menos afirmar que seja uma autora ou autor, uma pessoa ou várias, até mesmo se de fato é uma italiana. Pelo conhecimento de causa sobre alguns temas, figurinos e a cidade de Nápoles em seus livros, há indícios de que se trata de uma mulher italiana com cerca de 50 anos. Suas raríssimas entrevistas são intermediadas por representantes e feitas sempre por e-mail.
Em 2016, uma reportagem do jornalista Claudio Gatti para o New York Times Review of Books indicou que Anita Raja, tradutora que presta serviços para a editora que publica Ferrante na Itália, seria a pessoa por trás do pseudônimo. Raja negou. Os fãs de Ferrante criticam Gatti alegando que a reportagem foi uma invasão da privacidade da autora.
O que se pode dizer sem a menor margem para dúvida é que as narrativas femininas profundas provocam fascínio nos leitores de Ferrante. Essa admiração é ainda maior do que a curiosidade sobre a verdadeira identidade da autora. A seguir, especialistas de literatura, psicanalistas fãs e leitores comentam o que chamou a atenção na leitura da obra de Ferrante.
Feminismo fora da caixinha
A percepção que os livros de Elena Ferrante são feministas é lugar comum. No entanto, os leitores de sua obra destacam a forma “como” os livros abordam o feminismo.
“Suas personagens são complexas, ambivalentes, e instauram um feminino legítimo, abismal, avesso a clichês”, explica Natalia Timerman, psiquiatra, escritora e colunista do UOL.
“A escrita dos livros é feminista não apenas por colocar as mulheres como protagonistas, mas também por desenvolver personagens protagonistas que nem sempre são boazinhas. São mulheres complexas. Essa abordagem é rica e eu acho um olhar novo”, defende Cristiane Tada, jornalista.
A psicanalista paranaense Cauana Mestre conta que é difícil definir quais reflexões e afetos mais a fascinaram na obra de Elena Ferrante. “Posso dizer que ter lido a Tetralogia Napolitana foi uma travessia. Marcou para sempre a chance de acessar uma linguagem sobre o feminino e a vida das mulheres que, até então, eu não sabia que existia. Ferrante escreve sobre a complexidade da nossa existência sem apelar para discursos reducionistas ou panfletários; ela vai ao núcleo do vulcão por onde andamos, nos puxa para o vórtice do qual tentamos fugir – com ela mergulhamos fundo, mas emergimos, depois, mais fortes e conscientes. Gosto de pensar sua obra através de uma expressão que ela usa para definir a psicanálise: o léxico do precipício”, disse.
Best-sellers para muitos públicos
Em sua coluna no jornal britânico The Guardian, Elena Ferrante escreveu que “as mulheres vivem em constante contradição e enfrentam trabalhos insustentáveis: tudo, realmente tudo, foi codificado de acordo com as necessidades masculinas: até práticas sexuais e a maternidade”. Por isso, ela se sente “próxima a todas as mulheres” e que se reconhece “na melhor e na pior”. Ela completa: “Às vezes as pessoas me perguntam: ‘como é possível que você não conheça nenhuma imbecil?’. Conheço algumas, com certeza. A literatura está cheia delas, assim como a vida real. Mas, no fim das contas, estou do lado delas”, conclui.
Com esse objetivo de retratar a mulher da atualidade, seria possível supor que a leitura de Ferrante não atraísse tanto a atenção do público masculino. No entanto, o seu absoluto sucesso de vendas e as adaptações para o audiovisual como o filme A filha perdida, da Netflix e a série A amiga genial, da HBO, atraem cada vez mais o interesse de diferentes públicos. (Leia uma lista de filmes e séries sobre Elena Ferrante no final da reportagem).
É o que o clube de leitura Leia Mulheres de Goiânia (GO) constatou. O clube promove debates e leituras de escritoras mulheres desde 2016. Preferencialmente, elas procuram realizar leituras de escritoras que ainda não são tão conhecidas do grande público. No entanto, em julho de 2017,mês de férias escolares, o Leia Mulheres fez um encontro para debater o livro A filha perdida de Ferrante.
“O encontro do Leia Mulheres que debateu o livro A filha perdida trouxe muito mais homens do que costumamos receber no clube. Por ser a leitura de um livro mais pop, acredito que eles ficaram mais confortáveis, sem medo de falar em um clube de leituras feministas”, conta Maria Clara Dunck, doutoranda em Literatura na UnB, uma das fundadoras do Leia Mulheres em Goiânia.
Maternidade
Maria Clara também destacou um ponto marcante do encontro em Goiânia: “A gente ainda não tinha tratado o tema culpa materna com tanta profundidade. As mães falaram sobre tabus da maternidade como falta de apoio e solidão. Naquele momento eu ainda não era mãe, mas foi muito interessante conhecer mais sobre o assunto”, disse.
Giuliana Bergamo, jornalista, mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP conta que se tivesse que escolher um elemento entre os tantos que a atraiu para a obra de Ferrante, ela citaria a maneira como a maternidade é vivida por suas personagens. “É uma maternidade sofrida, transgressora, complexa e muito próxima da minha experiência como mãe e filha, ainda que só de maneira simbólica”, afirma.
Cristiane Tada explica que a autora fala de questões muito caras às mulheres, mas de um jeito único. “Ferrante dá bastante destaque para a forma que a maternidade reverbera na vida das personagens e sem romantizar a questão.”
A escrita Ferrante
“Ler Elena Ferrante é como visitar um lugar ao mesmo tempo conhecido e desconhecido. A escrita de Ferrante consegue chegar ao nó do desejo, do desejo feminino, esse lugar dito desconhecido e assim estabelecido pela psicanálise”, explica Natalia Timerman.
Giuliana Bergamo também fala como o jeito peculiar de Ferrante foi um ponto de atração. “É um texto aparentemente simples, encadeado, sedutor, mas que nunca conta tudo. Em vez disso, deixa brechas, guarda mistérios e, de tempos em tempos, nos surpreende com estruturas mais complexas”, disse.
Já Cristiane lembra que as nuances do idioma são importantes na obra de Elena Ferrante. “Na Tetralogia Napolitana, as personagens falam muito por um dialeto que só é falado em Napoli. Um dialeto antigo, que é uma resistência.”
“Sabe como é a sensação do dia seguinte ao começo de um novo exercício físico, quando descobrimos dores em lugares no corpo que não sabíamos existir? Ferrante faz isso comigo no mundo das palavras. Isso toca minha relação com o amor em diferentes vertentes: no amor pela escrita, pela humanidade, na amizade, na sexualidade, na maternidade. Nada em mim ficou ileso ao encontro com a literatura de Elena Ferrante”, disse a psicanalista Ana Suy.
Enredos e o mito Ferrante
“Admiro ainda como, em três décadas de obras publicadas, ela continua fiel a um mesmo projeto. É como se cada romance fosse uma peça de uma grande obra única da qual a própria autora faz parte”, explica Giuliana Bergamo. “Elena Ferrante é um pseudônimo e, portanto, uma criação que se mistura com suas personagens. Na minha leitura, todas elas – Lenus (a da Tetralogia e a garotinha de A filha perdida), Lila, Elena, Leda, Nina, Olga, Delia – se fundem e confundem. Isso acontece tanto no romance específico em que estão inseridas quanto dentro deste grande emaranhado que é o todo da obra de Ferrante.”
De Nápoles e universal
O italiano Yuri Brunello é professor de literatura Italiana da UFC e pesquisador de produtividade do CNPq. Ele conta que conheceu a obra de Elena Ferrante na metade da década de 1990 por meio do filme L’amore molesto, adaptação de Mario Martone. “Amei o filme sobre o livro da Elena Ferrante, por causa da capacidade de alternar experimentação formal e inspiração popular. No romance fiquei fascinado, em particular, pela modalidade de representação não folclórica dos subalternos de Nápoles. Ferrante construiu personagens de grande força expressionista e dramática”, conta.
Brunello relata ainda, de acordo com suas observações, que a recepção da autora é diferente na Itália e no Brasil. Na Itália ele percebeu leitores atraídos mais pelas narrativas. “Ferrante utiliza um estilo envolvente, retoma estratégias formais próprias dos autores de folhetins, sabe ser melodramática, sem deixar de produzir uma feliz confluência entre tal inclinação pelas paixões fortes e envolventes e uma sofisticada inspiração literária, uma refinada sabedoria técnica.”
No Brasil outras peculiaridades dos leitores chamaram a atenção do professor . “Muitas leitoras e muitos leitores no Brasil também ficaram fascinados com o poder da literariedade, mas a recepção brasileira me pareceu capaz de valorizar mais um elemento crucial nos livros de Ferrante, o aspecto político, de resgate e afirmação feminina e feminista”, afirma.
“Abordando com sua maestria narrativa temas delicados como o amor e a inveja entre amigas, Ferrante localiza dentro da literatura universal o que ainda é considerado assunto de mulher. A maternidade, o trabalho doméstico, o lugar das mulheres na política e no mundo são, afinal de contas, assuntos que dizem respeito a toda a humanidade”, analisa Natalia Timerman.
“Eu descobri com a Ferrante que eu gosto de ler ficção historiográfica. Ela fala da violência sofrida na periferia de Nápoles na década de 1950 que poderia ser em qualquer favela do Brasil. Isso aproxima da realidade”, conta Cristiane.
Os frutos e inspirações
“Ferrante me transformou numa leitora mais dedicada, numa pesquisadora de literatura — sigo meu percurso acadêmico como doutoranda na mesma área — e, também, em uma autora de livro. Participei de um clube de leitura pela primeira vez, do projeto Leia Mulheres, e percebi que estava mais ligada às personagens [de Elena Ferrante] do que imaginava: era como se as participantes estivessem falando de duas amigas a quem queria bem como se não fossem criações literárias, mas pessoas de verdade. Ao longo dos anos, precisei aprender a me aproximar e a me distanciar dos livros, pois, para que pudesse seguir com a pesquisa, precisei esmiuçá-los, mas também construir um afastamento crítico. Ainda assim, de quando em quando, distraída, me via retornando àquela primeira leitura e voltava a me comover ao pensar no que a literatura pode fazer com a gente”, definiu à revista Marie Claire Fabiane Secches, psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP.
Secches escreveu o livro Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência, que traz uma análise aprofundada das obras de Ferrante, especialmente da Tetralogia Napolitana. Há um capítulo dedicado a examinar o fenômeno de recepção chamado de “Febre Ferrante”, com diversos depoimentos de escritores, professores, pesquisadores e leitores no Brasil.
Natalia Timerman também conta que o seu trabalho de doutorado envolve a autora italiana. “Tenho me debruçado sobre a questão da autoria em Ferrante e Knausgård, observando o que chamo de movimentos de ficcionalização. A Ferrante ficcionaliza a obra de dentro para fora, digamos, até à própria autoria; Knausgård faz o contrário, escreve sobre si mesmo e ficcionaliza o interstício do romance, os detalhes.”
Guia para conhecer Elena Ferrante além dos livros
The lost daughter (A filha perdida, 2021) – Netflix
O filme é uma adaptação da estreante diretora Maggie Gyllenhaal do romance homônimo de Ferrante. A protagonista Leda é interpretada por Olivia Colman. O longa conta ainda com Dakota Johnson interpretando Nina e Peter Sarsgaard como o professor Hardy. O filme e o livro abordam a maternidade e a liberdade de escolha das mulheres.
The lying life of adults (A vida mentirosa dos adultos) – Netflix
Em maio de 2020, a plataforma de streaming e a produtora italiana Fandango anunciaram que estão produzindo uma série baseada em A vida mentirosa dos adultos. O elenco ainda não foi anunciado e não há previsão de estreia.
My brilliant friend (A amiga genial,2018) – HBO
A série é uma adaptação dos livros da Tetralogia Napolitana e apresenta a saga das amigas Lenu e Lila, na Itália pós Segunda Guerra. Cada temporada tem oito episódios e corresponde a um dos quatro livros da tetralogia.
Ferrante Fever (A Febre Ferrante, 2017)
Documentário traz depoimentos de leitores famosos como Hillary Clinton, Jonathan Franzen e Roberto Saviano, que avaliam o estrondoso sucesso e os mistérios que envolvem Elena Ferrante. Infelizmente, está disponível apenas na Apple TV dos EUA.
L’amore molesto (Amor apertubador, 2004 ) – Google Play
Adaptação de Mario Martone para o livro homonimo de Ferrante. Delia retorna a Nápoles para o funeral de sua mãe e começa a investigar seu passado. Aos poucos a mulher se identifica com a mãe em um delírio lúcido e doloroso de autopunição, que explode no cenário de uma cidade de canteiro de obras, em meio a mil cores e uma extraordinária polifonia de sons. Um thriller metropolitano. Sem legendas. Áudio apenas em italiano. Saiba mais aqui.
I giorni dell’abbandono (Dias de abandono, 2005) – Prime Video Itália
O cineasta Roberto Faenza dirigiu o filme protagonizado pela atriz italiana Margherita Buy. O longa conta a história de Olga, que é abandonada pelo marido. Transtornada e sem saber como lidar com seus filhos, Olga se entrega em um ato sexual desesperado com um homem que ela mal conhece. Não está disponível no Brasil.
Coluna no The Guardian
Em 2018, Ferrante começou a escrever textos mais curtos em uma coluna semanal no jornal britânico The Guardian. Em janeiro de 2019, ela publicou seu último texto na coluna explicando que embarcou na ideia como um desafio, já que estava com medo de não dar conta dos prazos e de precisar escrever mesmo sem ter vontade. No entanto, os textos seguem disponíveis no site da publicação. Leia aqui.
Leia mais
Entrevista com Marcello Lino, tradutor de vários livros de Elena Ferrante no Brasil
Resenha das peças teatrais adaptadas da obra de Elena Ferrante, por Fabiane Secches
Entrevista com a Fabiane Secches sobre A vida mentirosa dos adultos
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