POLÍTICA DA SOLIDÃO

POLÍTICA DA SOLIDÃO

Algo vai muito mal com a autocompreensão do ser humano sob a crença de que existe um padrão normal dos afetos que calibraria o todo da experiência emocional humana. A crença na normalidade confirma apenas que vivemos mergulhados na incomunicabilidade. Os sentimentos humanos são nebulosos e confusos, mas não são expressos senão por meio de atos desesperados que falam por si mesmos.

Se a norma fosse estabelecida pelo que há de mais comum, teríamos de voltar ao paradoxo de Bacamarte: o anormal é normal, o normal é anormal.

O fenômeno contemporâneo da psiquiatrização da vida nasceu como tentativa de eliminar a estranheza humana. Hoje ele sustenta a indústria cultural da saúde, que se serve do sofrimento humano como a hiena se serve da carniça.

Para os fins do logro capitalista já não basta aproveitar a desgraça do outro, também se pode ajudar a incrementar a produção do infortúnio usando a arma do discurso. A moral une-se à ciência nessas horas e quem paga o preço é o indivíduo humano, do qual se extirpa a capacidade de pensar sobre sua própria vida.

Se a indústria farmacêutica depende da evolução das drogas e dos remédios, depende também da existência de doenças. Criar um remédio pode implicar a criação da doença.

Assim é que uma das mais fundamentais experiências humanas na mira dos sacerdotes da moral que propagam a psiquiatrização da vida é, hoje, a solidão. A banalidade da proposta não é pouco violenta.

Em pesquisa recentemente divulgada, um médico norte-americano definiu a solidão não apenas como doença, mas como epidemia. Tratou-a como uma tendência contrária à evolução. Definida como um erro da “natureza humana”, a solidão passa a ser vista fora de sua dimensão social e histórica. Como doença, ela seria a causa do sofrimento e não o efeito da perda de sentido da convivência entre as pessoas. Em última instância, daquilo que seria o significado mais próprio da política como universo da integração entre indivíduos e comunidades.

Em um mundo em que a política foi destruída pelo poder transformado em violência, a solidão é o sintoma do medo do outro que ameaça o indivíduo.

Diz-se indivíduo daquele que não pode ser dividido, que é inteiro. Podemos dizer que a solidão é constitutiva de si no mais simples sentido metafísico. Mas há a solidão como um fato que diz respeito à vida vivida fora das relações. É essa solidão que deve ser inscrita na filosofia política como afeto político.

Mas não há nada de anormal em um indivíduo viver só. A solidão da qual muitos se queixam hoje como um desprazer pode ser para outros tantos um prazer. Viver em comunidade não faz sentido para todo mundo e isso não leva necessariamente à conclusão de antissociabilidade da qual o indivíduo seria a vítima ou o culpado.

A solidão nas cidades grandes é muito mais um sinal da precariedade do sentido da comunidade e da convivência, é mais um problema sociocultural do que de escolha individual.

SELVA DE PEDRA 

Certamente ela reflete a impossibilidade de retornar às florestas, como um dia fez Henry Thoreau. As florestas estão em extinção, assim como, curiosamente, a ideia de humanidade. Resta fugir para a moderna caverna na selva de pedra – sem querer reeditar lugares-comuns – que é a casa de cada um.

A solidão é, assim, a categoria política que expressa a nostalgia de uma vivência de si mesmo. Ela é, por isso, a tentativa de preservar a subjetividade e a intimidade consigo mesmo que não tem lugar no contexto de relações sociais transformadas em mercadorias baratas.

A sociedade da antipolítica precisa tratar a solidão como uma pena e um mal-estar quando não consegue olhar para a miséria da vez: o fetiche da hiperconectividade, que ilude de que não somos cada um em si mesmo não mais que “sozinhos”.

(10) Comentários

  1. Hoje o fugaz e o inconsistente, vendidos pelo derredor, preponderam nas relações humanas. Não se constroem mais relacionamentos reais, sedimentados em experiências compartilhadas.Todo mundo quer ter um milhão de amigos, sem se envolver com ninguém. São milhões de espectros com tênues fios de modismos os conectando fragilmente. Acredito que a solidão dos dias atuais decorra de não se querer ter um outro, pois o outro não é senão reflexo da própria profundidade! O outro reitera-nos como uno e parte! Em contrapartida, a solidão que prescinde do outro reconhecido como tal, esta sim, é salutar, foi, é e sempre será sinal de grande inteireza d’ alma.

  2. O MINISTÉRIO DA FILOSOFIA ADVERTE: NÃO SE BANHAR AO MENOS UMA VEZ NO OCEANO DA FILOSOFIA CINZA DO SUL É PREJUDICIAL A SAÚDE.

  3. O capitalismo sempre transforma às fraquezas humanas em capital. Tentam nos convencer de que a solução dos nossos problemas estão em pratileiras. E a indústria farmacéutica iludindo a todos com suas pírulas, do antienvelhecimento, emagrecimento, crescimento, amor, alegria,estão a nos tranformar em robôs emburrecidos. Anestesiados de sua própria existência.

  4. OBS: AO MENOS UMA VEZ “AO DIA”. POIS A POLUIÇÃO NO AR É GRANDE. O CORPO E PRINCIPALMENTE OS PULMÕES AGRADECEM!

  5. Inicio meu comentário com uma frase de seu artigo: “Para os fins do logro capitalista já não basta aproveitar a desgraça do outro”. De fato. Mas, de que maneira combater isso? como modificar o capitalismo? ou, o que seria melhor, como superá-lo?

    É justamente este debate que estou desenvolvendo em meu blog.

    Aqui esta parte dele:

    Em seu ensaio, intitulado “Jean-Paul Sartre: Uma bolinha feita de pêlo e tinta”, Paul Johnson diz que Sartre era egoísta. Como a maioria de nós, esquece o historiador. “Sartre não fez nada pela Resistência que provocasse algum efeito. Não moveu um dedo — nem escreveu uma palavra — para salvar os judeus. Concentrou-se implacavelmente na promoção da própria carreira. Escrevia furiosamente: peças, ensaios filosóficos e romances, principalmente nos cafés. Seu texto filosófico mais importante, ‘O Ser e o Nada’, foi escrito entre 1942-43”. Mas, havia um motivo por detrás deste “ateísmo histórico”: “Sartre utilizou sua nova filosofia para oferecer uma alternativa: nem uma igreja, nem um partido, mas uma ousada doutrina individualista na qual cada ser humano é visto como mestre absoluto da própria alma caso escolha seguir o caminho da ação e da coragem. Era uma mensagem de liberdade depois do pesadelo totalitarista.”

    Em última analise, isto significa que a filosofia sartreana aspira ser uma alternativa original para o capitalismo decadente, tanto quanto o socialismo.

    O próprio Sartre explica: “A única maneira de aprender é discutir. É também a única maneira de fazer-se homem. Um homem não é nada senão um ser que cumpre isto: alguém que é fiel a uma realidade político-social, mas que não deixa de colocá-la em dúvida. Claro está que pode se apresentar uma contradição entre sua fidelidade e sua dúvida, mas isto é algo positivo, é uma contradição frutífera. Se há fidelidade, mas não há dúvida, a coisa não vai bem: deixa-se de ser um homem livre.”

    Sejamos homens livres!

    Abraços, Márcia.

    Diego Araújo da Rosa.

  6. Sinceramente, solidão é doença?
    Diga para os grande cientistas e filósofos que na solidão encontraram dentro de si as respostas. Isso parece piada -.-
    O homem com mania de por nome em tudo, e de querer criar um padrão pra tudo.

  7. Só troca a minha solidão se for por uma boa companhia. Me dou muito bem comigo, sou meu melhor amigo. Encontrar pessoas inteligentes, já com informações peneiradas corretamente, é muito difícil. Contudo, quando deparo com uma pessoa como vc, conclúo que solidão é sair de casa e ouvir as pessoas, condicionadas à matéria e sem a mínima noção daquilo q são. Produtos de uma aceleração da destruicão do planeta, galgadas em comprar e comprar buscando assim alguns momentos que curem suas interpretações de “solidão”. Penso 99 vezes, não conclúo. Me calo. No silêncio, a resposta. Solidão não é estar abandonado, como julgam os idealisadores, solidão é silêncio e nos dá a oportunidade do entendimento intuitivo. Esta é a minha opinião.

Deixe o seu comentário

Novembro

Artigos Relacionados

TV Cult