Poderzinho
Marcia Tiburi e Rubens Casara
Está na hora de introduzir em filosofia o conceito de “poderzinho”.
Se o poder é um dispositivo complexo, o poderzinho é a sua simplificação. Se o poder é difícil de alcançar, o poderzinho é o que está ao alcance da mão. Expresso de diversas formas, o poderzinho se manifesta no dia-a-dia: desde o homem que espanca até o homem que xinga, da médica que se nega a atender o filho de uma pessoa cuja posição ideológica ela não gosta, até porque não a entende, até o repórter que cria informações e entrevistas falsas sobre pessoas com quem ele jamais conversou.
O poderzinho está no funcionário que cria burocracias desnecessárias para o cidadão comum até o governador e a equipe de governo que se especializa em roubar merenda. Esse é o poderzinho no ápice de sua manifestação, quando imaginamos homens brancos, adultos, roubando merenda de crianças…
Às vezes o poderzinho é confundido com corrupção. É que o poderzinho é uma forma corrompida de ação que implica toda forma de burla, desde sonegar impostos a todas as formas de carteirada. A carteirada, quando a presenciamos, é das mais interessantes dentre as formas de uso do poderzinho, pois só um dono do poderzinho, aprisionado em seu narcisismo é capaz de se deixar cair nesse ridículo. O ridículo é uma categoria política, mas sobre isso falaremos em outro momento.
Lembro de uma aluna, estudante de filosofia, que foi retirada de uma palestra pela chefe da segurança por ser negra. A chefe da segurança era branca e usava uma farda, mas era apenas uma trabalhadora, como é o policial que espanca jovens estudantes, jovens negros, pessoas pobres apenas porque são pobres e negras sendo que ele mesmo é muitas vezes também negro e, certamente, pobre.
O poderzinho é para todos, uma forma perversamente democrática: da elite dominante aos dominados, o poderzinho é aquela forma de poder que carrega o estranho prazer da humilhação do outro. O prazer dos impotentes com as migalhas de alguma coisa que o faria se sentir o máximo. E isso porque ele se sente o mínimo. A humilhação que ele pratica, ele a conhece muito bem. Por que para se sentir melhor, o dono do poderzinho precisa fazer o outro se sentir bem mal.
A impotência
O poder tem alguma coisa de força. Pessoas ou grupos que exercem poder, seja para oprimir, seja para libertar, sempre dão a impressão de força. Não podemos dizer que a força que produz golpes de estado seja diferente em intensidade da força que produz as revoluções. Quando a força é imensa, incontornável como um arranjo entre o físico e o simbólico, podemos chamá-la de violência, daí o caráter ambíguo da constituição do poder. Toda violência física é de algum modo simbólica e toda violência simbólica é, em certa medida, física.
Às vezes, a violência destrói o direito, mas quando ela é revolucionária, ela cria um novo direito. Em regra, porém, a violência é utilizada para manter o direito que dá sustentação legal à estrutura de um determinada sociedade, por isso em sociedades desiguais e autoritárias a violência “autorizada” pelo Direito está a serviço da manutenção da desigualdade e do autoritarismo.
Para criar (e manter) o direito é preciso muita força. Coerção, manipulação e consentimento são ingredientes importantes. Dominação, exploração e, muitas vezes, a sedução entram em jogo na constituição do poder. O poderzinho, por outro lado, está sustentado pela miséria subjetiva, ética e política de quem o exerce. Na falta de um poder real, o titular do poderzinho se contenta com símbolos de poder ou manifestações de puro arbítrio, contra a pessoa que encontra na rua, contra os colegas, contra quem ele não conhece.
Se o poder é força conjunta, o poderzinho se caracteriza pela forçação de barra, pela simples vontade de uma pessoa submeter outra ao seu desejo e às suas certezas. O poderzinho é exercido tanto no ambiente público quanto na esfera privada, tanto por juízes ou guardas rodoviários quanto por pais, mães, maridos, mulheres, filhas e filhos. Redes sociais são espaços onde o poderzinho se exerce sem limites.
Da mesma maneira que a ausência de reflexão gera o vazio do pensamento, a falta de poder real, a ausência desse complexo de relações capaz de produzir uma força irresistível, gera o poderzinho, que é só vaidade, pretensão e impotência.