Pobre príapo, triste tigre
O campeoníssimo jogador de golfe Tiger Woods teve, a partir do final do ano passado, sua vida privada – se é que essa expressão ainda faz algum sentido no mundo de hoje – vasculhada, exposta e julgada em escala planetária. Como, infelizmente, se sabe, tudo começou quando Tiger sofreu um acidente de carro próximo à sua casa, em Isleworth, na Flórida. Os paparazzi de plantão (sintagma pleonástico) logo se eriçaram. O golfista teria se recusado a comentar o caso, pedindo privacidade à imprensa – sancta simplicitas! –, mas a corja já tinha farejado a possibilidade irresistível de mais um massacre. Surgiram rumores de que Tiger e sua esposa teriam brigado na noite do acidente e que a causa seriam as supostas infidelidades dele.
Poucos dias depois, a revista US Weekly publicava entrevista com a ex-garçonete Jaimee Grubbs, de 24 anos, que afirmava ter mantido relações com o atleta durante 31 meses. Logo veio à tona uma rede de amantes, uma cafetina que dizia ser o golfista seu cliente, e pronto, mais uma vida era oferecida em espetáculo sacrificial – a quem? A essa pergunta tentarei responder adiante. Mas há outra questão nesse caso, que é a que pretendo privilegiar aqui.
Na edição de 3 de março, a revista Veja publicou uma matéria intitulada “Sexo Tem Cura?”. Nela, relatava principalmente os desdobramentos dos episódios recentes, narrados acima, da vida de Tiger Woods. O jogador internara-se numa “clínica de reabilitação de viciados em sexo”. Ficou internado por 45 dias e, ao sair, “protagonizou um patético pedido de desculpas ao mundo inteirinho”. Eis os fatos, basicamente. A matéria prossegue descrevendo o funcionamento das tais clínicas de “rehab para sexo compulsivo”, apresenta dados estatísticos de “especialistas” (em quê?, pergunto-me eu) sobre a porcentagem dos compulsivos sexuais no mundo e, no fim, comenta outros casos de supostos compulsivos sexuais. Ao final de tão instrutiva leitura, dá vontade de puxar a cordinha e pedir: “Parem o mundo que eu quero descer”.
O álcool e o sexo
Impressiona, de saída, a associação, ou melhor, a equivalência estabelecida entre o álcool e o sexo. O álcool, até certo ponto, abranda a experiência neurótica da realidade. A experiência neurótica é aquela da contradição, das negociações entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. O álcool suspende provisoriamente as demandas sufocantes do princípio da realidade, tornando-a mais benevolente. Por amor à literatura, evocarei duas de suas passagens a respeito. Na primeira, em Guerra e Paz, o narrador nos conta que Pierre, “quando havia ingerido uma ou duas garrafas, percebia vagamente que esse nó tão complicado da existência, que habitualmente o amedrontava tanto, não era tão terrível quanto ele imaginava”. Nesse estado, Pierre escapava de seus problemas estruturais, prometendo-se resolvê-los “mais tarde”. “Mas esse ‘mais tarde’ não chegava nunca”.
Do mesmo modo, diz-nos o seguinte a espantosa e antológica abertura de O Amanuense Belmiro: “Lá pelo oitavo chope chegamos à conclusão de que todos os problemas são insolúveis. Florêncio, então, pediu um nono, a ver se este traria a solução geral”. Num caso como no outro, as contradições da realidade são suspensas pelo álcool. Pierre é capaz de esquecê-las quando bêbado, e os personagens de Cyro dos Anjos são capazes de fazer uma boutade que dribla a angústia física e metafísica. Ocorre que, como se sabe, o efeito do álcool passa, e a realidade permanece a mesma. Alguns tomarão o caminho de viver cada vez mais, e finalmente todo o tempo, nesse estado de suspensão da realidade. “Vício” é o nome que se dá a esse acontecimento, quando o princípio da realidade vai sendo progressivamente abandonado, com consequências, obviamente, desastrosas para a pessoa que se lhe entrega.
Mas se pode comparar o sexo a isso? Por que alguém pode querer curar-se do sexo? O que determina uma compulsão sexual? Em que o sexo faz mal ao sujeito (para além, é claro, de o desejo ser o veneno-remédio que vitaliza e frustra, necessariamente)? A matéria de Veja diz que só quem pode saber se sexo faz mal é o sujeito “que está prejudicando a própria vida a ponto de procurar ajuda terapêutica”. Não devemos perder de vista o contexto da matéria e seu personagem principal, Tiger Woods. Ora, trata-se de um sujeito com evidente obediência ao princípio da realidade. Com excelência, até: é um campeão, rico, esportista, em aparente ótimo estado de saúde. O que faz com que sua experiência sexual possa ser tachada de compulsiva, “autodestrutiva”, em suma, patológica?
Não gozarás
Nada. O fenômeno com que estamos tratando não é o de uma patologia, mas de uma patologização. A vida sexual de Tiger Woods passa a ser autodestrutiva no instante mesmo em que começa a ser destruída pela mídia. É aí que sua esposa descobre ou é ofuscada por suas infidelidades; é aí que ela tem de se haver com o fato de de repente se sentir humilhada em escala mundial; é aí que as relações extraconjugais de Tiger se tornam de uma inconsequência imensa; é aí que ele perde dinheiro, pois seus contratos de publicidade vão sendo todos cancelados; é aí que, submetido a um julgamento universal, culpabilizado até o fundo da alma, ele decide se internar, pedir desculpas, e acaba por assumir um erro que é completamente diferente do que cometeu. Seu erro (no sentido de uma errância, de desviar-se de um caminho reto), originalmente, não tem nada de patológico. Atire a primeira pedra aquele cujo desejo nunca conheceu contradições, aquele que ignora pulsões incontroláveis, aquele que nunca saiu dos parâmetros morais com que tenta conduzir sua vida. Seu erro, originalmente, deveria pertencer à sua esfera privada, e deveria resolver-se – ou revelar-se insolúvel – em sua vida íntima, com sua esposa. Mas a extrapolação de sua conduta para o público absoluto (noção pavorosa) patologiza o erro, o que ele termina por confirmar ao internar-se (mas quem resistiria a tal massacrante julgamento?).
Deve-se perguntar ainda: a quem se oferece tal imolação? E por quê? E por que ela é aceita? Na sociedade do espetáculo e do culto às celebridades, a admiração, que contém uma dimensão masoquista, está sempre na iminência de revirar-se dialeticamente em inveja e sadismo. Quando essa oportunidade surge, a turba se entrega ao linchamento. E as celebridades (vide, por exemplo, o caso Ronaldo) parecem aceitar essa covardia como uma contrapartida, igualmente irracional, da idolatria que lhes é dedicada. Todos entram em surpreendente acordo, em uníssono acorde hipócrita. Os linchadores colocam-se como pilares da moralidade. Os reús declaram-se arrependidos e prometem se emendar. No fundo, o que se passa é uma vingança que tem o gozo por objeto. Os idólatras das celebridades agora exigem: “Nós passamos nossas vidas assistindo ao vosso gozo, e fazendo-vos gozar com nosso olhar; abusastes, e agora tereis vós que assistir ao nosso gozo com a vossa derrota, e sereis obrigado a nos deixar gozar até o fim, isto é, o vosso fim, e permitir que esteja em nossas mãos ressuscitar-vos. Caso contrário sereis por nós abandonado”.
O preço é alto, proporcional à fama; não se exige menos do que uma espécie de lobotomização da libido (isto é, uma supressão absoluta do gozo, objeto da inveja e consequente alvo do sadismo): “Durante o tratamento, o paciente tem que remexer em traumas passados, admitir que se permite pornografia, masturbação e outros atos sexuais, todos excessivamente (‘Podemos não mudar o comportamento, mas estragamos o prazer’, garante o especialista americano Rob Weiss)”. Por sua vez, quem abre a oportunidade do massacre é sempre a mídia, a que costuma faltar qualquer reflexão sobre os limites do privado e do público, sobre o que deve ou não deve ser de interesse jornalístico. Tacitamente, vamos sendo reduzidos ao bordão do Silvio Santos: “Topa tudo por dinheiro”.
A propósito, estou longe de desqualificar a revista Veja in totum, como fazem muitos dos intelectuais de hoje. Mas devo observar a aparente contradição que há no fato de numa mesma edição constar essa matéria que subscreve a patologização do sexo ao lado de mulheres seminuas com evidente apelo sexual. De um lado, um chamado à moderação sexual (com fortes ecos de um discurso de salvaguarda da família tradicional), de outro, um apelo à excitação sexual. Não há contradição: topa tudo por dinheiro. Enquanto isso, um sujeito é patologizado, sua vida é devastada, e quem paga o pato é o sexo. Pobre Príapo, triste Tigre.
(2) Comentários
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Freud, até Francisco Bosco explica!!!
Isso me lembra muito algumas artimanhas do controle do Big Brother de Orwell na sociedade por ele imaginada em seu 1984. No nosso caso a tortura é psicológica e o grande irmão somos todos nós.