Pílulas para saudades

Pílulas para saudades
(Foto: Aron Visuals/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


“Terno preto, camisa branca, gravata vermelha, pasta de trabalho, um lindo sorriso que ela lhe devolve com alegria se encaminhando ao seu encontro, pronta para o abraço tão desejado, mas confusa por aquele reencontro inesperado, em um contexto estranho. Em meio ao seu atordoamento pergunta: quanto tempo?”

Não chegou a escutar as palavras, mas teve tempo suficiente para sentir o carinhoso abraço ao despertar inebriada, com aquela sensação de aconchego, sem conseguir distinguir de imediato sonho e realidade. Quanto tempo haveria dormido? Quanto tempo tem permanecido em sonho? O aperto no peito a fez compreender que era tomada de saudades.

Em meio aos devaneios do recém despertar se apercebe dos mais de cem dias em isolamento social, trabalhando em casa, sentindo falta de pessoas queridas e das experiências da vida social. Neste momento, o número de dias se multiplica exponencialmente dentro de si parecendo uma eternidade.

Saudade nem sempre comparece em pílulas, em pequenas doses, às vezes a dose é descomunal, enchendo o coração de angústia. Manoel de Barros diz: “uso as palavras para compor os meus silêncios”. Traz um alento ao lembrar que as palavras são pílulas de alívio, que auxiliam a sonhar com os reencontros, novos encontros, novas experiências. Afinal se há saudades é porque houve uma marca, a partir de uma experiência no espaço e no tempo.

Para alguns, a saudades só poderá ser preenchida com pílulas de palavras. A separação foi radical, e aí o tempo é outro.

Enquanto tento alinhavar essas palavras ouço “batidas na porta da frente, é o tempo”, me relembrando que é preciso (re)ler o passado para poder rabiscar um futuro, e que isso só é possível no presente, de modo que os três tempos estão articulados em um único tempo.

Saudades que brotam de experiências passadas, mas que são lembradas e ajudam a viver o presente, contribuindo para construção de sonhos futuros.

Tudo na vida passa, a grande questão está em como fazemos passar!

Uma “insubmissa lágrima” brota!

 

Carmem Oliveira, 39, é baiana, psicanalista e mestre em
Psicologia. Residente em Curitiba, é casada, amiga, leitora fiel se
aventurando na escrita

 

 

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