Pequeno glossário junguiano
Complexo, energia psíquica, símbolo: entenda alguns conceitos fundamentais de Carl Jung (Foto: Reprodução)
Energia psíquica
O termo não possui uma qualidade específica, servindo para indicar a intensidade da oposição entre conteúdos psíquicos. Não é uma substância que se move no espaço e sim uma relação entre movimentos psíquicos opostos. Como se trata de um puro quantum intensivo cujas qualidades assumidas são secundárias, a oposição entre as qualidades não é excludente, mas includente. Assim como toda ação corresponde uma reação de mesma intensidade em sentido contrário, todo dito possui um contradito que aparece com a mesma intensidade que lhe foi investida de maneira consciente. Como a consciência tende à unilateralidade devido ao processo de adaptação ao meio circundante, ela tende a se identificar com o dito negando o contradito que se torna então inconsciente.
Símbolo
O símbolo não esconde e sim expressa da melhor maneira possível algo inconsciente que compensa a atitude da consciência. Enquanto o sintoma é a expressão de uma antítese inconsciente negada, o símbolo realiza a síntese entre a consciência e o inconsciente. Ele é produzido pela função transcendente que recebe esse nome por ser ter a função de transcender as dissociações psíquicas. Em si mesmo o inconsciente é uma negação abstrata, o puramente desconhecido, mas enquanto fenômeno produtor de efeitos sobre a consciência ele é, pelo menos hipoteticamente, compensatório. Jung adota uma hipótese de trabalho tanto empírica quanto ética, no sentido de que qualquer tipo de correção de um fenômeno psíquico deve vir dele mesmo, da sua compensação interna e não de uma reflexão externa, de uma posição moralista adotada de um ponto de vista exterior ao fenômeno em questão.
Sombra, anima e animus
São os nomes que Jung deu às formas típica que o inconsciente costuma compensar a consciência, aos tipos de personificações mais comuns do inconsciente. A sombra é a personificação do outro instintivo, amoral, que não está em acordo com as normas sociais vigentes, mas que é interno a nós mesmos e, por isso, uma dentre as múltiplas formas possíveis de manifestação do inconsciente. O ego é o ato de dizer “eu sou isto”. Ao dizer que é “isto”, ele nega ser “aquilo” que o contradiz. Ao afirmar-se como masculino, ele nega sua feminilidade e todas as características que se opõem ao seu modo de ser masculino tornam-se inconscientes. Se a identificação de gênero do ego se dá com o masculino, o inconsciente costuma se personificar como feminino, como Anima, enquanto no caso contrário o inconsciente aparece como masculino, como Animus.
Si-mesmo
Termo usado para se referir à psique enquanto totalidade auto-organizadora. Esse processo de autorregulação é “natural” no sentido de ser espontâneo, de ser uma propriedade emergente da própria tensão entre os opostos psíquicos e não algo externamente imposto. Jung chamou esse processo de Si-Mesmo, porque ele costuma aparecer personificado como uma “personalidade mana”. O Si-Mesmo é a totalidade e o centro virtual da psique, porque a psique se move como uma totalidade no momento em que seus aspectos funcionam como partes de um mesmo todo auto-organizador, no momento em que deixam de ser um conjunto de agregados externos uns aos outros e se movem de maneira relacional. E no momento em que isso acontece, o funcionamento do conteúdo se define pela relação de oposição em que se encontra, de modo que o Si-Mesmo é tanto o centro como os extremos da relação.
Complexo
A noção de complexo foi criada por Jung ainda antes de sua aproximação com a psicanálise, a partir dos testes de associações de palavras que realizava com seus pacientes e com voluntários, no Hospital de Burghölzli, Suíça. Um complexo (ideo-afetivo) é um arranjo de ideias sobre um determinado tema intensamente preenchido ou tonalizado por afetos. Um complexo tem relação com o campo biográfico pessoal, contudo, o seu núcleo é sempre um arquétipo do inconsciente coletivo. A importância desta noção se dá, no mínimo, por duas razões: do ponto de vista da concepção da subjetividade a existência dos complexos significa que a personalidade é a priori múltipla, carecendo de unidade, pois eles têm um bom grau de autonomia quando inconscientes, podendo constelar-se se um cenário de vida específico os ativar, modificando a personalidade. Em segundo lugar, do ponto de vista clínico, o analista deve estar atento para a sua presença trabalhando a favor da sua integração com a personalidade em geral e os demais complexos, especialmente o complexo do ego, favorecendo o processo de individuação.
Individuação
Segundo Jung, em Memórias, sonhos e reflexões, o processo de individuação é o conceito fundamental de toda a sua psicologia. O inconsciente tem uma natureza dinâmica, se transforma e provoca transformações constantemente. São as tensões entre o ego e o inconsciente que desencadeiam uma verdadeira metamorfose da psique, nas palavras do próprio Jung, e o que essa metamorfose deve produzir é um ser único em sua totalidade, indivisível, o que pode ser compreendido no dito clássico “torna-te quem tu és”. É um erro comum aproximar a individuação de individualismo, trata-se justamente do contrário, pois o processo de individuação se dá com e na coletividade, de onde o sujeito em sua autorrealização deve diferenciar-se e, simultaneamente, devolver novos valores, modificando-a.
Sincronicidade
Jung percebeu e procurou desenvolver uma explicação para as coincidências significativas e conexões acausais produtoras de sentido que encontrou em sua vida e na vida de seus pacientes. Estas coincidências colocavam lado a lado disposições ou estados psíquicos (por exemplo, sonhos) e a realidade objetiva de forma a produzir sentido em arranjos probabilísticos no mínimo incomuns. Além disso, algumas expressões dos fenômenos sincronísticos colocavam em questão a compreensão tradicional da temporalidade, referindo-se a acontecimentos futuros e da espacialidade, referindo-se a conexões sincrônicas, mas distantes no espaço. Em função disto Jung interessou-se fortemente pela física contemporânea e iniciou uma relação de amizade com o físico e prêmio Nobel Wolfgang Pauli, que o auxiliou no desenvolvimento do conceito de sincronicidade. Em última instância, a sincronicidade é um princípio que propõe a não-dualidade entre espírito e matéria ou, dito de outra forma, psique e realidade. Jung esclarece que esta concepção não é exclusivamente sua, mas esteve presente na história humana sob várias formas como o TAO chinês, O unus mundus medieval, a harmonia praestabilita de Leibniz entre outras.
Arquétipo/ inconsciente coletivo
Foi a observação de delírios, fantasias e sonhos de seus pacientes e o paralelismo temático destes com mitos, expressões da literatura universal e mesmo contos de fadas que aparecem reiteradamente nos ambientes e culturas mais variados que fez com que Jung criasse e articulasse as noções de inconsciente coletivo e arquétipo. Os arquétipos são formas sem conteúdo, são vazios, são elementos formais, uma facultas praeformandi e não inacessíveis em si mesmos, só podemos conhecê-los porque manifestam-se como imagens (primordiais ou arquetípicas) acompanhadas de tonalidade afetiva por vezes fascinantes e arrebatadoras. Esta manifestação ocorre por um preenchimento do arquétipo a partir do material específico da experiência consciente. Enquanto os complexos tratam de temas biográficos ou pessoais, os arquétipos tratam de temas universais que aparecem regularmente sob uma infinidade de variantes e o seu topos é o inconsciente coletivo, a camada mais profunda do inconsciente, compartilhada em variados graus pela humanidade. O arquétipo é a contraparte do instinto e, assim como ele, só se pode conhecer na sua manifestação. Um erro comum é considerar os arquétipos como representações herdadas e confundi-los com as imagens que os expressam, mas não há representações herdadas, apenas formas vazias. Do ponto de vista clínico, o ego (no mais das vezes, frágil) pode ser tomado por um arquétipo vivido diretamente, sem mediações, neste caso trata-se de uma ruptura psicótica.
André Dantas é psicólogo clínico de orientação junguiana, autor dos livros Psicologia dialética: uma crítica interna à psicologia junguiana, entre outros
Maurício Silveira dos Santos é médico psiquiatra, psicoterapeuta, analista em formação pelo Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul, pela AJB e pelo Iaap