Pequeno glossário heideggeriano

Pequeno glossário heideggeriano
Compreensão, existência, fenomenologia: entenda conceitos fundamentais na obra de Heidegger (Foto: Reprodução)

 

 

Compreensão

 

 

A compreensão é um existencial decisivo do ser-aí. Heidegger afasta esse existencial de um conhecimento teórico, de uma mera faculdade do ser-aí. Na verdade, a compreensão é associada ao “em-virtude-de-quê” uma ação (ou omissão) é realizada. Assim, compreensão vem vinculada ao sentido, dentro da tradição hermenêutica. Em outras palavras: ao existirmos, abrimos campos de sentido em virtude dos quais algo aparece enquanto algo, ou seja, compreendemos. Desse modo, o ser-aí pratica uma ação: ela deve fazer sentido para ele.  

 

 

Existência

 

 

Segundo Heidegger, ser-aí é o que somos em termos de existência. Só o ser-aí “existe” na análise heideggeriana, porque o existir do ser-aí é o ek-sistir, ou seja, o projetar-se em suas possibilidades, lançar-se para fora [ek] de si. Assim, ser-aí é o único ente que ek-siste. Os outros entes são, mas não “existem”. A pedra é, mas não existe. O triângulo é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A existência [Existenz] em Heidegger tem um caráter eminentemente dinâmico, jamais estático. Afirmar que ser-aí existe é ressaltar que, em essência, ser-aí é movimento, é ek-stasis, pois está perpetuamente saindo de si mesmo para projetar-se e, nesta dinâmica, transcender. Ser-aí está condenado a lidar com o seu ser. Ele pode tentar se esquivar desta condição, pode viver autêntica ou inautenticamente, mas está sempre mergulhado no turbilhão da existência. O ser-aí não pode ser considerado categorialmente, pois a categoria é imutável. O ser-aí não pode ser tema de uma definição conceitual, pois não pode ser acessado pela questão que baliza a metafísica – “O que é isto? – “tóde tí;”. O ser do ser-aí aponta para seus modos de ser: os existenciais. O ser-aí não tem nenhuma determinação prévia e isso é o mesmo que afirmar que ele é indeterminado ontologicamente.  

 

 

Fenomenologia

 

 

Desde meados dos anos 1910, Heidegger se apropriou da fenomenologia de Edmund Husserl de modo absolutamente peculiar. Seu interesse nunca foi estabelecer os atos intencionais de consciência (sujeito) que constituem fenômenos (objetos), mas sim entender a fenomenologia como um método – o único – por meio do qual podemos tornar manifesto (legein, de onde vem logos) aquilo que se mostra (phainomenon), a partir de si mesmo. Heidegger se interessa em fazer a análise dos atos intencionais do ser-aí a partir de seus correlatos. O fundamental é que Heidegger quer encontrar e analisar o correlato para o ser-aí prático no cotidiano – e não para uma consciência intencional. Mas qual seria esse correlato? Não pode ser coisa (como na metafísica aristotélica, na qual a substância é suporte – substrato – hipokeimon – de qualidades). Nem mesmo objeto, que só pode surgir na relação sujeito – objeto (ciência moderna). Heidegger conclui que o correlato deve ser buscado no modo dinâmico como o ser-aí lida com utensílios, com outros seres-aí, consigo mesmo. A inspeção fenomenológica revela que o sentido de um utensílio é dado não pela sua finalidade, mas sim pela rede utensiliar que possibilita o surgimento dos utensílios: A carteira do estudante só adquire sentido a partir da sala de aula na qual ela se encontra e pode desempenhar alguma função. 

 

 

 Hermenêutica

 

 

A hermenêutica surge no século 19, com o teólogo e tradutor Schleiermacher, como a arte/teoria da compreensão de textos escritos. Posteriormente, com Dilthey, ela se torna o estudo do método das ciências humanas, tais como teologia, história, filologia, teoria literária. Para Dilthey, as ciências humanas, embora dependam, em certo sentido, das descobertas empíricas das ciências naturais, devem seguir métodos e propósitos completamente distintos. Basicamente, afirma Dilthey, enquanto as ciências naturais operam de acordo com a categoria de causalidade, que nos leva a descobrir as leis racionais e universais que descrevem os fenômenos da natureza, as ciências humanas, por partirem das manifestações do mundo da vida, das Erlebnisse (vivências), integram a própria interpretação hermenêutica em suas tentativas de compreender os eventos humanos. Resumindo: as ciências naturais buscam a explicação dos eventos da natureza, enquanto as ciências humanas evidenciam a compreensão, o sentido, dos feitos humanos. Temos aí o círculo hermenêutico, que exerceria influência decisiva na trajetória filosófica de Heidegger nas décadas de 1910 e 1920. No entanto, na apropriação heideggeriana em Ser e Tempo, a hermenêutica tem um sentido eminentemente prático – a hermenêutica é o modo como existimos. Somos seres hermenêuticos, pois ao existirmos já sempre estamos lidando com nosso ser, com o ser de outros seres-aí e com o ser dos utensílios que utilizamos. Para Heidegger, somos hermenêuticos porque, quando nos projetamos no mundo, projetamo-nos compreensivamente, ou seja, já sempre nos acompanha uma pré-compreensão do ser, ou seja, uma compreensão, de início e na maioria das vezes, não tematizada, não explicitada do ser. 

 

Linguagem

 

 

Heidegger afirma no texto Carta sobre o Humanismo (1946) que “a linguagem é a morada do Ser”. Tal frase só pode ser compreendida se tivermos em mente que o filósofo, a partir de meados dos anos 1930, pretende levar a linguagem filosófica às últimas consequências, aproximando-a e afastando-a da linguagem poética. Assim, o segundo Heidegger resgata o sentido original da linguagem como lógos, mas aqui na acepção primeira de légein como recolha, coleta, reunião (a acepção antropológica de “falar” é importante, mas seria derivada). Reunir significa aqui corresponder à verdade do ser como alétheia, ou seja, como des-velamento dos entes na Clareira. A linguagem, em termos de lógos, é a morada do ser justamente porque permite o des-ocultamento dos entes por meio do discurso – mas um discurso desprovido da racionalidade técnica, um discurso que resista a ser enquadrado nos termos da theoria conceitual metafísica. Heidegger, em suma, propõe um pensamento que recupere a essência esquecida da linguagem. Segundo Heidegger – e, em outro sentido, Nietzsche – haveria um forte diálogo entre filosofia e poesia no alvorecer da palavra dos pré-socráticos e dos poetas trágicos gregos. Assim, Heidegger propõe uma meditação, uma reflexão, da co-pertença entre ser e linguagem, entre poesia e filosofia, entre logos e discurso, entre a Verdade do Ser e a História do Ser, que resgate a capacidade revelatória da palavra e da linguagem. 

 

Ser e Ente

 

 

Em Ser e Tempo, Heidegger mostra que a resposta para a questão sobre o sentido do ser, que é o grande tema de seu pensamento até a década de 1930, só pode ser dada por uma ontologia fundamental, ou seja, o questionamento de ser que evita a sua entificação – ser não é ente.  O caminho para a colocação correta da questão exige uma pesquisa prévia sobre um ente privilegiado, justamente este ente que nós sempre somos, o ser-aí, justamente porque ele é o único ente para o qual ser pode ser questão, ainda que essa inquirição seja feita de modo ambíguo, confuso e não explícito em uma pré-compreensão.  

A radicalidade dessa pesquisa leva a dois resultados correlacionados: 1) a chamada “diferença ontológica”, segundo a qual não é possível entender a distinção entre ser e ente como a distinção entre dois entes; 2) destruição da metafísica, pois a metafísica, desde seu surgimento com as reflexões de Platão e Aristóteles, tende sempre a entificar o ser, o que Heidegger chama de “esquecimento do ser”.  

 

Ser-aí (Dasein)

 

 

É o ente em torno do qual gira a obra Ser e Tempo (1927). Ser-aí não é exatamente o ser-humano, ou melhor, não é o humano em termos biológicos, portanto, não pode ser entendido apenas como “vida”. Na obra Ser e Tempo, Heidegger tem por objetivo fazer a análise do ser-aí porque este é o único ente para o qual o sentido do ser pode se tornar questão. Assim, há articulação direta entre a pergunta sobre o sentido do ser e o único ente que realiza essa pergunta – o ser-aí. Daí a relação incontornável entre ontologia fundamental e analítica existencial (a análise dos modos de ser do ser-aí). Só pode haver descrições (e não definições) do ser-aí. Em Ser e Tempo, Heidegger afirma que o ser-aí é o ente que eu mesmo sou a cada vez, ou seja, ele é marcado pela singularidade. Logo ser-aí não é conceito, nem essência, nem universal, nem determinação. Além disso, ao ser, o ser-aí se relaciona necessariamente com seu ser, por isso, eu mesmo sou responsável por tudo o que acontece comigo. Isso é o mesmo que afirmar que o ser-aí sempre coloca em jogo seu ser. Como consequência dessas observações, temos: a) (Radicalidade Ontológica) O ser-algo do ser-aí só pode ser entendido a partir da sua existência, ou melhor, a essência do ser-aí é existir, logo b) (Negatividade Ontológica Fundamental) Ser-aí é poder-ser. O ser-aí não é o que é, mas sim ele é seu poder-ser, o que é o mesmo que dizer que ser-aí sempre se põe em questão. Em outras palavras, ao ser-aí sempre falta algo: ser-aí é a sua possibilidade.  

 

Ser-no-mundo

 

 

Segundo Heidegger, o ser-aí é essencialmente um existente. Ele é perpassado pela indeterminação ontológica, pois nenhuma essência o determina. Na verdade, sua essência é articulada pelos seus modos de ser – os existenciais. O ser-aí sempre se antecipa e se projeta para fora; o ser-aí é projetado além-de-si para o espaço aberto. Logo, ele é-no-mundo.  Assim, não há ser-aí e mundo – Mundo é caráter, é traço do ser-aí e aparece de acordo com três vertentes: 1) a mundanidade do mundo circundante [mundanidade do Umwelt], ou seja, os modos por meio dos quais ser-aí lida com entes sem o caráter da existência, a partir de uma perspectiva prática (como martelar um prego, fazer compras, instalar um aplicativo no celular, limpar o quarto); 2) Cotidianidade mediana (existência imprópria). O ser-aí precisa do mundo para suprir sua vacuidade, dado que é esvaziado, não é preenchido por essência alguma. Daí a absorção no impróprio, ou seja, nas sedimentações históricas do mundo, que fornecem as orientações historicamente sedimentadas da existência. No entanto, há sempre no ser-aí um foco que pode quebrar a estrutura das sedimentações – a propriedade. A propriedade é uma possibilidade aberta pelo ser-aí de se projetar no mundo de modo a manter-se na negatividade que o constitui (nada); 3) O ser-em. É o espaço existencial (não é, de modo algum, interioridade) que se vincula à morada na Terra. A morada implica familiaridade – deixo me absorver em contextos de ação orientados. O ser-no-mundo é familiarizar-se com o mundo. Assim, não apenas o mundo atenua nossa indeterminação ontológica como também – e isso é decisivo – o mundo sequestra nossa possibilidade de lidarmos de modo originário com nossa negatividade. Temos, respectivamente, a tranquilização e a alienação.  

 

Técnica 

 

 

O segundo Heidegger se afasta dos problemas colocados na obra Ser e Tempo e passa a enfatizar a liberação do pensamento de sua instrumentalização pela lógica das tecnociências, que só fazem expandir sua influência por todo o mundo, tornando-o inabitável. No lugar do pensamento calculatório, que visa a medir e quantificar para mais bem dominar, Heidegger ousa propor um pensamento que não se deixe enquadrar nos ditames da tecnociência. Ao lado da poesia, o pensamento livre do domínio tecnocientífico, caso seja possível, é a forma mais elevada de agir, pois não se utiliza das categorias classificatórias da metafísica. Esse pensamento é ético porque se coloca a serviço de compreender a relação do homem com a essência da técnica, sem se render à compartimentalização da linguagem em áreas pré-definidas de racionalidade. Heidegger propõe, assim, que o pensamento: 1) Resgate a lucidez socrática da autorreflexão: Afinal, o que estamos fazendo? 2) Esteja aberto para responder ao apelo do Ser, esteja atento para a Verdade do Ser e para o esquecimento do Ser, cuja história é a Metafísica. 

 

Virada ou Viragem

 

 

A Viragem (Kehre) no pensamento de Heidegger teria ocorrido, de acordo com os comentadores, em algum momento entre os anos seguintes à publicação de Ser e Tempo e meados da década de 1930. A partir de sua confrontação com o pensamento de Nietzsche e de suas releituras da poesia romântica de Hölderlin. A partir da Viragem, temos o segundo Heidegger, que radicaliza seu projeto de destruição da metafísica com o intuito de pensar o ser em termos de sua verdade. Tal projeto já aparece em Ser e Tempo, mas vinculado à analítica existencial do ser-aí como abertura para o ser. O segundo Heidegger passa a entender a analítica existencial como projeto fracassado porque ainda estaria excessivamente presa a uma linguagem metafísica. Os temas principais das reflexões pós-Viragem são a crítica da Vontade da Vontade nietzschiana, o entendimento da filosofia e da poesia como modos de dizer o ser e, finalmente, o confrontamento com o pensamento e a ação cada vez mais dominados pela técnica no mundo contemporâneo, no qual predomina o que Heidegger chama de errância do ser. 

Newton Gomes Pereira é professor titular de Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, doutor em filosofia pela USP, pós-doutor em Filosofia pela UNICAMP, especializou-se no pensamento político de Hannah Arendt e na primeira filosofia de Martin Heidegger


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