Pensando com o meu celular

Pensando com o meu celular
Em setembro, convidamos nossos leitores a refletir sobre o que nos conecta (Arte: Cynthia Gyuru/Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setembro de 2020 é “conexão”.


Houve tempo em que as pessoas diziam-se ligadas: “Tô ligado! Tá ligado?”. Era uma vinculação psicológica.

Depois, passaram a ficar antenadas: “Tô antenado! Você precisa se antenar!”. Era uma vinculação intelectual.

“Ligar-se” ou “antenar-se” eram forma de expressão para se referir a um estado de espírito, um jeito de ser de um indivíduo em relação a outros, ou a ideias e tendências correntes.

Isso já é coisa do passado. Hoje, há de se conectar.

Conectar-se não mentalmente, mas tecnicamente. E não por um estilo de vida: por uma necessidade vital. Já que tudo e todos estão conectados nessa rede invisível denominada Internet, eu preciso também me conectar nela para existir.

É o que eu estava pensando com o meu aparelho celular, enquanto mexia nele. Quando não se tem o domínio de um objeto, a gente fica mexendo nele, qual uma criança que, deslumbrada com um presente que acaba de ganhar, põe-se a conversar com o seu brinquedo.

Os adultos, porém, não falam tudo o que pensam. Eu somente pensava. Pensava sobre as várias possibilidades que este aparelhinho me abre: os seus diversos “aplicativos” que eu posso utilizar; as inúmeras informações que ele armazena e eu posso acessar. Mas já não é pouco essa sua utilidade-básica: tirar-me uma selfie (releve-se o pleonasmo bilíngue!) e mostrá-la ao mundo. Indo além: enviar uma carta/e-mail por mala-direta a todos os meus contatos, sem precisar de envelope, sem ter de ir aos Correios, sem risco de extravio e sem gastar com selo.

E não falando desta função, para que um aparelho-telefônico ainda serve: falar. Com este aparelhinho, daqui de meu isolamento, eu posso falar com todos os quase oito bilhões de irmãos espalhados por este nosso Planeta. Desde o que mora do outro lado desta parede, e eu desconheço, até aquele que vive na mais remota tribo do mais distante ponto deste Globo, e nunca nos encontramos. E vê-los! E ser visto por eles! Em tempo e circunstâncias reais! Basta que eles também tenham às mãos um desse aparelhinho, o que é fácil de obter.

Dentre os quais (7,8 bilhões) incluem-se Sua Majestade Elizabeth II, no palácio de Buckingham; Sua Santidade Francisco, no Palácio Apostólico; Your Excellency Donald Trump, na Casa Branca; Sua Excelência Jair Bolsonaro, no Palácio da Alvorada. E Seus Ídolos Madonna, Mick Jagger e Roberto Carlos; Sua Celebridade Anita; Seus Fenômenos Pelé, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho – que não sei por onde andam.

Eu, em minha privadacidade; eles, em suas respectivas. Falando-nos e vendo-nos…

E pensar (continuei refletindo com o meu celular) que a então Nossa Majestade D. Pedro II, nos idos de 1876, numa exposição em Filadélfia, USA, deslumbrou-se com um aparelho-geringonça que emitia sons-gruídos: “Meu Deus, isto fala!” – teria exclamado Nossa Majestade.

Ainda pensando com o meu celular, pulei um século: 1976. Eram poucos e fixos os aparelhos-telefônicos. Então, ambos os que pretendessem se conectar tinham que se dirigir a um posto, que, por vezes, ficava fora e longe de casa. Geralmente, as conexões demoravam a se completar, e nem sempre se ouvia com nitidez a voz do interlocutor. Agora, não. Tudo se faz a qualquer lugar e hora, instantaneamente e nitidamente: som e imagem!

Disso se segue que este aparelhinho, se me permite conectar-me, também me propicia isolar-me; se pode me expor, também me ajuda esconder; se me leva a todos os lugares, é porque com ele não preciso sair de casa; se pode me devassar, também pode me servir de cortina.

Fui além, no pensamento.

De certa forma, tudo sempre esteve conectado no Universo, posto que ele seja único; utilizar essas conexões é uma simples questão tecnológica, que se inventou agora. E mesmo se existirem múltiplos e paralelos universos, conforme especulam os físicos quânticos, deve haver algum meio de conexão entre os possíveis universos. Então, um dia – para se usar uma expressão de nosso tempo –, um dia um alguém descobrirá as conexões (uma nova “banda” de Internet; talvez a milésima) entre os vários universos, e a técnica de utilizá-la, de modo a que possamos nos comunicar de um universo a outro…

Miragem?! – Sim. Porém, não maior de que seria, para uma pessoa que viveu há mil anos, aquilo que se tornou realidade ao imperador Pedro II (“Meu Deus, isto fala”!); e para este, o que hoje é uma realidade à minha mão…

Miro, então, daqui a cem, a mil anos…

Mas aí eu já estava sonhando. Assustei-me com um toque de meu aparelho celular: era uma operadora telefônica oferecendo-me uma nova linha de conexão, mais potente que esta – assegurou-me o funcionário-telemarketing.

Francisco Dias Teixeira, 66, é escritor. Procurador da República
aposentado, é bacharel em Direito (PUC/SP) e Filosofia (USP). Nasceu em Jequeri-MG e vive em São Paulo, capital, desde os 16 anos.

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