Privado: Pensamento PiXação

Privado: Pensamento PiXação

Para questionar a estética da fachada

Marcia Tiburi 

A revolta geral da sociedade contemporânea contra a pichação se ampara na hipótese de seu caráter violento. Usarei a expressão pixação, com X, para tentar tocar no X da questão. A estética da brancura ou do liso dos muros, hegemônica em uma sociedade que preserva o ideal da limpeza estética, dificulta outras leituras do fenômeno da pixação. O excessivo amor pela lisura dos muros, a sacralização que faz da pixação demônio, revela enquanto esconde uma estética da fachada.

Toda estética inclui uma ética, assim a da fachada. Fachada é aquilo que mostra uma habitação por fora; pode tanto dar sequência ao que há na interioridade, quanto ser dela desconexo. É da fachada que se baste por si mesma à medida que lhe é próprio ser suficiente aos olhos. A estética da fachada que defende o muro branco é a mesma que sustenta a plastificação dos rostos, a ostentação dos luxos no “aparecimento geral” da cultura espetacular, no histérico “dar-se a ver” que produz efeitos catastróficos em uma sociedade inconsciente de seus próprios processos.

Nesta São Paulo do começo de século 21 não é permitido cobrir “fachadas” com propagandas e outdoors. A proibição, ainda que democrática, produz um novo efeito de observação da cidade. Tornou-se visível o que se ocultava por trás do “embelezamento” capcioso sobre um outro cenário. A obrigação do padrão do liso é efeito da democracia que, no entanto, flerta com sua manutenção autoritária. É o desejo governamental da neutralidade e da objetividade no espaço público o que deve servir de cenário à vida na cidade. Governar é no Brasil a habilidade de comandar a fachada que na administração paulistana sai do símbolo para entrar na prática mais imediata do cotidiano. A vontade de fachada é, afinal, uma vontade de poder compartilhada por toda a cultura em todos os seus níveis.

A pixação é o contrário do outdoor, ainda que compartilhe com ele a proibição de aparecer no cenário urbano comprometido pelo governo com uma neutralidade que serve à mesma ocultação de carroceiros e outros excluídos. Ampara-se no olhar burguês cego para mendigos e crianças abandonadas nas ruas. Enquanto o outdoor pode se sustentar no pagamento das taxas que o permitem, a pixação não alcança nenhuma autorização, ela está fora das relações de produção. O que o outdoor escondia era muitas vezes a própria pixação, enquanto a pixação não esconde nada, ela é o que se mostra quando ninguém quer ver sendo meramente compreendida como “ofensa” ao muro branco. Anticapitalista, a pixação não se insere em nenhuma lógica produtiva, ela é irrupção de algo que não pode ser dito. Sem pagar taxas, o pichador exercerá uma espécie de lógica da denúncia. Mas quem poderá perceber?

Não é possível negar o direito ao muro branco ou liso em uma sociedade democrática, na qual está sempre em jogo a convivência das diferenças. O direito ao muro branco é efeito da democracia. Mas a questão é bem mais séria do que a sustentação de uma aparência ou de um padrão do gosto. A pixação é também um efeito da democracia, mas apenas no momento a ela inerente em que ela nega a si mesma. Ela é efeito do mutismo nascido no cerne da democracia e por ela negado ao fingir a inexistência de combates intestinos e velados. A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à cidade. Um abaixo-assinado, às vezes surdo, às vezes cego, pleno de erros, analfabeto, precário em sua retórica, mas que, em sua forma e conteúdo, sinaliza um retrato em negativo da verdade quanto ao espaço – e nosso modo de percebê-lo – nas sociedades urbanas. Espaço atravessado, estraçalhado, pela exclusão social.

A pixação é uma gramática que requer a compreensão da brancura dos muros. O gesto de escrever só pode ser compreendido tendo em vista que todo signo, letra, palavra, investe-se contra ou a favor de um branco pressuposto no papel. O grau zero da literatura é esta luta com o branco. A escrita é combate contra o branco, negação do alvor fanático, como o pensamento é sempre oposição e negação do que se dispõe como evidente, convencional, pressuposto. Por outro lado, a escrita é abertura e dissecação do branco, lapidação do branco pelo esforço da pedra, mas nunca sua confirmação, nunca é a ação da borracha, do apagamento, da camada de tinta que alisará o passado, o que desagrada ver. Sua lógica é a do inconformismo infinito. Imagine-se uma sociedade em que o papel não fosse feito para a escrita, em que as superfícies brancas de celulose não sustentassem ideias, comunicação, expressão, afetos, anseios, angústias. Imagine-se uma sociedade em branco e começar-se-á a entender porque a pixação nas grandes cidades é bem mais do que um ato vândalo que, para além de ser uma forma de violência, define a cidade como um grande livro escrito em linguagem cifrada. O pichador é o mais ousado escritor de todos os tempos. Diante do pichador todo escritor é ingênuo. Diante da pixação a literatura é lixo.

A Cidade como Mídia

Uma leitura da pixação que veja nela a mera ofensa ao branco perderá de vista a negação filosófica do branco que é exercida pela pixação. A pixação eleva o muro a campo de experiência, faz dele algo mais do que parede separadora de territórios. Mais do que propriedade invadida é a própria questão da propriedade quanto ao que se vê que é posta em xeque.

A pixação é o grito impresso nos muros. Ação afetivo-reflexiva em uma sociedade violenta que não aceita a violência que advém de um estado de violência. Ela é a marca antiespetacular, o furo no padrão da falsidade estética que estrutura a cidade. É a irrupção do insuportável à leitura e que exige leitura para a qual a tão assustada quanto autoritária sociedade civil é analfabeta. E politicamente analfabeta.

Em vez do gesto autocontente, o que a pixação revela é a irrupção de uma lírica anormal. A Internet com seus blogs (horrendos, bonitos, mais bem feitos ou mais mal-humorados) é o seu análogo perfeito. A pixação revela o desejo da publicação que manifesta a cidade como uma grande mídia em que a edição se dá como transgressão e reedição onde o pichador é o único a buscar, para além das meras possibilidades de informar ou comunicar, a verdade atual da poesia, aquela que revela a destruição da beleza, o espasmo, a irregularidade, a afronta, que não foi promovida pela pixação, mas que ela dá a ver. Em sua existência convulsa, a pixação é a única lírica que nos resta.

(13) Comentários

  1. Muito bom embora com texto bastante rebuscado, difícil de entender em certos pontos. Mas acho importante que se pense mais a fundo no fenômeno da “pixação”.

  2. Entendo o contexto da exclusão social, mas a pichação é muito feia esteticamente, muito violenta. Não consigo arrancar lirismo daquilo, nem cultura no sentido popular de cultura.

  3. Refuto. Vivemos numa sociedade em que “muros brancos” são falacias utópicas. Desafio a quem quer que seja que fotografe um muro branco em são paulo que não esteja policiado 24 horas. Nem violento, nem feio, pixação é um ato simplesmente imaturo, aculturado, pobre de mente e espirito. De que vale uma assinatura compulsiva sem nenuhm proposito? Abaixo assinado de quê?? O seu “pixador com x” perde a razão ao defender nada mais do que seu próprio ego. Admiro profundamente o artista grafiteiro, que realmente expressa arte e ponto de vista. Compreendo a revolta escrita, mas ela é tão inócua quanto a queixa na fila do banco, nada resolve. Mas pixação com x, só por pichar, não é o contrario de outdoor. É um outdoor particular de egolatria e delinquência. Falta absoluta da Moral e Cívica, matéria que faz muita falta nas escolas de hoje. O ataque indiscriminado a um monumento público como o cristo redentor é indefensável. A cidade como mídia, merece grafia correta, teor artistico e idéia expressa com um minimo de classe, Sra. Professora Tiburi. A paisagem urbana, como qualquer mídia, está mais suja do que embelezada, pontilhada por estupidez e mediocridade disfarçadas de notícia e coragem. Exatamente o que me vem à cabeça ao ver algo assim : http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b7/Sao_vito2.JPG

  4. A tal “pixação com x” está para a Arte Urbana assim como a ‘Mulher Melancia’ está para a Mona Lisa.
    Não tem nada a ver com manifesto popular é pura mediocridade, Professora.

  5. Mediucridade é colocar sua assinatura nas paredes da cidade como um tarado só por IBOP entre os piXadores. Admiro a sagacidade de muitos pixadores em arriscar a vida por isso, mas nada. Pixação sem propósito-de classe- nao leva a nada. apenas reflete a falta de perspectiva da juventude pobre. A rebeldia da Pixação, sua estética, seu aventureirismo deve ter uma direção contra o sistema opressor da burguesia. caso contrario, é PiXe vazio.tento convencer meu amigos pixadores do “senso comum” em aproveitar o momento do ecstasi e dedicar uma critica. nao sou muito bom em convencer……mas nao desisto.

  6. A pixação é política por contestar a ordem vigente imposta de cima e responsável por exclusão. O pixador destrói a limpeza do mundo enquanto o Estado limpa às ruas de usuários de crack. A força da pixação está em resgatar o horror que a todo instante tentamos reprimir, como as forças nefastas que nos observam da escuridão. Ela anuncia letra a letra o mal-estar civilizatório ao qual somos obrigados a sucumbir em nome da segurança. Toda parede branca anuncia um estado totalitário que quer ver excluído tudo aquilo que incomoda. Nesse ponto, a pixação se liga a arte de vanguarda, por ser capaz de contestar e negar a beleza falsa do mundo contemporâneo. Sua ilegalidade é apenas a assinatura de que se trata de uma prática válida enquanto forma de sustentação da individualidade daquele que está em exclusão.

  7. O Texto é bacana, mas não é feito por alguém de dentro, é um relato lírico de alguém que vê por fora, não acho que a pixação tenha um apelo lírico, pelo contrário, acho que pixação é Anarquia, uma agressão feita a altura do sentimento de agressão que é sentido por quem faz parte uma sociedade cega e apática.

  8. Sem o menor sinal de desrespeito pelas idéias da autora e reafirmando toda a admiração que tenho pelo trabalho-pensamento de Márcia Tiburi, o texto não me pareceu mais do que um brincaste jogo de palavras, onde plantou-se sem que se pudesse ver vingar ou frutificar esta tal lírica que a pichação nem de longe tem. A professora Tiburi, por sua própria fartura e generosidade, doou poesia e significado a ações na maior parte das vezes descoordenadas, que não são sequer anarquia, posto que muitas vezes inconscientes e inconsequentes de qualquer propósito societal (ainda que eu reconheça um quê de social no grito do sujeito ou na pertença grupal que serve de mote para algumas pichações).
    Por favor não nos esqueçamos que a fachada (branca ou multicolorida, limpa ou suja, maculada ou imaculada) é superfície de algo ou alguém que não pode (ou não deve) ter tolhido seu direito de expressar seu apreço pela brancura ou pelo que quer que seja. Eu não oponho, obviamente, a propriedade à livre expressão, mas à expressão que, violentamente, emudece outra expressão, tão humana e tão legítima como qualquer outra, exceto aquelas que, a fórceps, querem fazer o seu muro parir o discurso do outro enquanto este o amordaça.

  9. Quem vive fora da realidade da pixação não conhece esse mundo, nossa revolta com a sociedade burra, nosso vicio,nosso amor pela pixação, amizades que fazemos, e principalmente a adrenalina que é.
    Nosso mundo é esse, um mundo que ninguém gosta, um mundo que só a gente entende.
    VIVA A PIXAÇÃO !

  10. Na minha rua tem um grafiteiro que é simplesmente genial. Ninguém tem coragem de desfazer o que ele faz nos muros brancos. Não é um vândalo. É um filósofo, um crítico e um sonhador. Não desfigura monumentos ou qualquer coisa pública.
    A CEEE, Companhia Estadual de Energia Elétrica, no seu aniversário contratou vários grafiteiros para
    trabalharem ao longo dos muros de uma quadra quadrada. Ficou lindo. Foi num sábado. Virou uma festa a nossa rua. Porisso, não podemos generalizar. E xistem vândalos, gente sem critério e existe a manifestação artística e crítica dos grafiteiros que é democrática e saudável.

  11. A Pixação é uma especie de oportunidade negada às pessoas mais simples, que entram nesse universo por meio de um condicionamento clássico iniciado pelo propulsor da pixação em São paulo (Cão Fila) ao iniciar o ato de pixar o pixador em questão descobre um universso paralelo onde ele pode ter oque a sociedade nega, Podemos compara com a primeira oportunidade de emprego, onde tudo oque fizer vai depender apenas dele, seria um estágio da vida real onde a moeda é outra,o pixador não recebe dinheiro porém tem a sensação de ser rico. Ele inicia em um grupo e através da ética profissional e muito trabalho pode-se alcançar o patamar de o melhor pixador em uma escala de tempo, pode ser nomeado o comando de um grupo, ter prestigio e ser respeitado. É simples de entender, basta olhar o planeta e as coisas que existem dentro dele como patrimônio da humanidade, pois para os pixadores não existem donos de algo, pois não lidam com valore econômicos, a oportunidade de aprender e de se sociabilizar dentro de um grupo e gerada pelos chamados rolês, encontros em point’s, criatividade e capacidade de se adaptar a diversas situações. O pixo reflete o descaso com os jovens, o abandono da educação nas escolas plublicas, a falta de recursos para não precisar iniciar nesse universo paralelo.

    Sergio Costa
    Biologo, técnico em Ecologia, Dinâmica de comunidades.

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