A ópera a serviço dos estados íntimos e fugidios

A ópera a serviço dos estados íntimos e fugidios
(Foto: Bob Sousa)

 

Fotos de Bob Sousa

A encenação das óperas O canto do cisne e Palestra sobre pássaros aquáticos, ambas com libretos inspirados em duas peças curtas de Tchékhov – apresentadas em programa duplo, de 18 a 21 de agosto no Theatro São Pedro –, convida o espectador à fruição de uma bem-vinda intertextualidade entre literatura, teatro e ópera, cujo cerne parece ser o estímulo à preservação da memória, desdobrada em duas proposições: a memória da arte e da cultura e a memória na arte e na cultura.

O grande destaque desse programa precioso é promover o encontro do público com uma obra em que lucidez e desencanto se misturam com complexidade e profundeza ímpares, como é o caso das narrativas de Anton Pavlóvitch Tchékhov (1860-1904), o grande escritor e dramaturgo russo que concebeu uma galeria antológica de personagens para os quais a plenitude dos pequenos entusiasmos do dia a dia mal disfarçam a ausência do sentido maior da vida. Os contos, novelas e peças de teatro do autor acabaram por se distanciar da escola realista em voga no século 20, constituindo um espesso conjunto de criações cuja singularidade ainda fascina artistas, leitores e intelectuais mundo afora.

(Foto: Bob Sousa)

Máximo Górki escreveu em 1900 uma carta para Tchékhov na qual apontava, entre admirado e atônito, a mudança de perspectiva que a obra do amigo estava imprimindo à arte e à literatura russas:

Você sabe o que está fazendo? Está matando o realismo… Depois de qualquer de suas histórias, por mais insignificante que seja, tudo parece rude, como se fosse escrito não com uma pena, mas com um porrete.

Os temas básicos com os quais tais histórias lidam – o insucesso, a impotência, a nostalgia e a solidão do homem – não correspondiam aos anseios da musa realista, anunciando a crise pela qual a forma dramática iria passar logo depois, como atesta Peter Szondi em Teoria do drama moderno [1880-1950] :

Assim como os heróis dos dramas tchekhovianos, apesar de sua ausência psíquica, continuam a viver em sociedade e não tiram da solidão e da nostalgia as últimas consequências, persistindo em um ponto flutuante entre o mundo e o eu, o agora e o outrora, tampouco a forma dos dramas renuncia de todo às categorias de que carece enquanto forma dramática. Ela as conserva como acessórios desprovidos de ênfase a permitir que a temática verdadeira tome forma em algo negativo, como se desviando dela.

As figuras nascidas da pena de Tchékhov renunciam ao presente e ao encontro com a vida, refugiando-se em lembranças e reminiscências tingidas por utopia e autoexílio.

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O libreto de Palestra sobre pássaros aquáticos – de autoria do compositor estadunidense Dominick Argento (1927-2019), também criador da música – toma por base a segunda versão da cena-monólogo em um ato Os malefícios do tabaco, escrita em 1902 (enquanto a primeira versão, de 1887, investe mais no histrionismo do protagonista, a segunda o converte em um ser essencialmente patético), promovendo uma interessante fusão desse material com o tratado ornitológico Os pássaros da América, publicado entre 1827 e 1838 pelo naturalista norte-americano de origem francesa John James Audubon (1785-1851).

Em vez de proferir a malfadada palestra imposta por sua tirânica mulher sobre os males da nicotina, o velho professor trata da exuberante fauna emplumada do novo continente, assunto que sempre escapa a sua atenção – atormentado que ele está pelo mal da solidão –, mas com o qual a sua situação básica ironicamente se relaciona: cada um dos pássaros apresentados acaba por apresentar, por sua vez, um pouco mais da psique do angustiado personagem, encarnado com admirável verve pelo baixo-barítono Licio Bruno.

Já o libreto de O canto do cisne – de autoria de Livia Sabag, responsável também por ambas as encenações – mantém-se mais fielmente próximo do original tchékhoviano, operando, por exemplo, uma mudança que algumas encenações teatrais também empreendem: no lugar de um velho ator cômico de 68 anos, que rememora em seu camarim, junto ao também velho ponto, sua outrora brilhante carreira, temos aqui uma atriz veterana cumprindo a função – o que levou a libretista a substituir os recitativos das tragédias Boris Godunov e Rei Lear pelas falas da protagonista de Fedra e da velha rainha Margareth em Ricardo III.

(Foto: Bob Sousa)

Cumpre notar que o texto, concebido em 1886 e classificado pelo autor como “estudo dramático em um ato”, surgiu a partir do conto Calchas, publicado no mesmo ano na Gazeta de São Petersburgo. No conto, o comediante que acorda sobressaltado pela embriaguez está vestido como Calchas, personagem da “comédia sombria” Troilus e Créssida de William Shakespeare, também presente na opereta A bela Helena, de Jacques Offenbach.

Musicalmente, a cena-monólogo Os males do tabaco transforma-se na “mono-ópera” Palestra sobre pássaros aquáticos, na qual os elementos musicais estão relacionados com muita expressividade aos elementos textuais. Há duas tramas, a rigor: a trama tonal – que se desdobra em duas linhas, uma para o palestrante e outra para os pássaros – e a trama propriamente fabular, igualmente cindida, entre o que está referenciado no discurso do palestrante (os pássaros, como pretexto) e o que está implícito nele (sua solidão, como subtexto). É por meio do que o próprio compositor chamou de “ciclos de música”, dominantes do início ao fim da obra, cuja progressão se dá de maneira ritmada como uma conferência precisa ser, que se pode esboçar um agudo retrato do personagem.

O trabalho do compositor Leonardo Martinelli em O canto do cisne foi criar uma forma híbrida entre as linguagens da ópera e da música incidental, uma vez que, em muitas ocasiões, o canto desaparece para dar lugar ao teatro de prosa, quando Olga, a velha atriz, recorda-se de alguns de seus memoráveis papéis e os recita para Nikítuchka, o ponto (o tenor Mauro Wrona em firme atuação). Fosse o libreto tradicional, tais momentos de intensidade dramática corresponderiam a árias; aqui, diferentemente, correspondem a falas.

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Para sustentar a atmosfera emocional de uma atriz dividida entre a euforia de se recordar de quem foi e a disforia de constatar em quem se transformou, Martinelli procedeu a uma escrita de texturas e sonoridades vocacionadas para a música de câmera, expressas reiteradas vezes em “pianíssimo”, como, aliás, a crítica literária costuma classificar as atmosferas das narrativas de Tchékhov. Segundo o compositor, canto e fala privam de uma certa homogeneidade, estando ambas a serviço da expressividade emocional da protagonista, fluida como um longo devaneio.

O pequeno retábulo que compreende a junção dessas duas óperas reveste-se de alguns valiosos ornamentos, todos eles talhados pelo “páthos da consciência da velhice” (de acordo com a feliz expressão da professora e tradutora Aurora Fornoni Bernardini), que subjaz na música, no texto e na encenação, propriamente, como arte autônoma que é. Velhice entendida ora como decadência do corpo, ora como equivalente à morte – o combalido palestrante é um mero espectro do que poderia ter sido, não tivesse casado com uma mulher cuja rabugice o assombra; a atriz e o ponto veteranos às vezes parecem figuras fantasmáticas, que não se dão conta de que não pertencem mais à ordem do mundo; ela agonizando lindamente, como, dizem, fazem os cisnes – ora ainda, em sentido positivo, como aquele estágio da vida em que se acumulam muitas lembranças, correspondentes às glórias incontestáveis que só a maturidade pode conferir a homens e mulheres.

Interessante traçar tal paralelismo: O canto do cisne de outrora teria sido escrito para ser interpretado por um monstro sagrado do teatro russo (há dúvida se para o ator Lenski, do Teatro Maly de São Petersburgo, ou para o ator Davidov, do Teatro Alexandrinski). Convertido agora em ópera, O canto do cisne presta tributo a uma grande dama do canto lírico brasileiro de projeção internacional, Eliane Coelho, que com sua participação no projeto do centenário Theatro São Pedro ajuda a perpetuar a memória da ópera entre nós. A memória, todos sabemos, não é uma prerrogativa da velhice. Antes, ela constitui um ativo exercício de evocação de estados de consciência passados e de preocupação com sua permanência. Que a arte costuma praticar muitíssimo bem. “Onde há arte, onde há talento, não há velhice, nem solidão, nem doença, e a própria morte só existe pela metade”, afirma Tchékhov pela boca de um comediante de teatro provinciano de segunda categoria, que, ao dizê-lo, também alivia sua alma.

(Foto: Bob Sousa)

O CANTO DO CISNE e PALESTRA SOBRE PÁSSAROS AQUÁTICOS
Theatro São Pedro
Rua Barra Funda, 171 – Barra Funda – São Paulo
Quinta a sábado, às 20h
domingo, às 17h
Ingressos: de R$ 80 a R$ 15
Classificação: 12 anos
Duração: 120 minutos
Até 21 de agosto

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, onde atualmente é diretor.


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