Olhos abertos, Luíza

Olhos abertos, Luíza
(Foto: Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de junho de 2020 é “quarentena”


Atenção redobrada na hora de usar máscara, álcool em gel nas mãos, passar água sanitária nos alimentos, televisão ligada para o noticiário, usar água sempre que necessário, “fique em casa” – e mais tarde a publicidade mudou, “quem puder, fique em casa”.

Noticiário mostrando o crescimento nos óbitos por Covid-19, crianças pretas morrendo porque atiraram primeiro e depois resolveram perguntar, população indo às ruas para reivindicar o direito de que “vidas negras importam”, “vidas importam”, “vidas dos indígenas importam”; a dificuldade de novos leitos, população arriscando tudo o que não tem em filas quilométricas para um auxílio que não chega em muitos lares brasileiros. As notícias não param, mas parei de ver notícias tão trágicas, de ter a televisão ligada à espera de boas notícias.

Desliguei a televisão e fui olhar as notícias da rua, qual era o seu movimento. Famílias que iam para as varandas ver o pôr do sol, deitar na rede, algumas cantavam e outras acompanhavam. Quando baixava o olhar, via uma frequência de pessoas sozinhas e outras poucas com suas famílias. Dia após dia vendo todas essas pessoas e até conversando com algumas delas, resolvi registrar através da fotografia pela perspectiva das janelas do apartamento, famílias majoritariamente pretas procurando nos lixos por um alimento ou objetos que pudessem trocar; vendedor de picolé que passava chorando e pedindo para alguém comprar por apenas um real, crianças dormindo dentro da carroça, funcionários de supermercado arrastando carrinho até as casas e apartamento dos clientes, quatro jovens pretas que brigaram com funcionários do mercado porque não deixaram elas remexerem no lixo. Elas seguem seu caminho, umas delas chama a amiga, Luíza, para se acalmar, dizendo outras latas apareceriam, já que a noite de trabalho estava só começando.

Através das janelas vivenciei o contraste das varandas para os corpos negros, que olhavam cada vez mais para baixo na busca por sobrevivência; mais um dia para continuar na luta, para ter mais uma chance nesse país.

Vi uma mulher negra empurrando um carrinho de mão às cinco da manhã e, às cinco da tarde, um homem branco empurrando o carrinho do filho e mexendo no celular, sem pressa e tranquilidade. Um homem que estava pedalando resolve parar. Olha para o menino pretinho apenas de short e máscara no rosto, que esperava o pai dentro da carroça. Rapidamente, o homem tirou uma barra cereal da mochila, entrega ao menino e volta a pedalar.

Vi pessoas do condomínio me confundindo com trabalhadora doméstica somente pela minha cor, preta.

Através das janelas não tinham famílias negras aproveitando o dia, reunidas para o ver o pôr do sol ou aproveitando o sol. As famílias pretas estavam muito atentas olhando as lixeiras em busca de algo. Notícias da rua contada por uma mulher preta que fotografa nas horas vagas as ruas.

Ana Dindara, 25, é arqueóloga em João Pessoa, PB

 

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