Oficina Literária – O intangível

Oficina Literária – O intangível

Teve início num agosto, não sei de que ano. E se forçasse a memória, me sairiam dela mais coisas do que quero lembrar. Nem preciso, é – nem preciso é. Costumo pensar assim: num agosto qualquer, uma pessoa qualquer apareceu para conversar comigo. E não que essa tenha sido a mais interessante das últimas semanas, nem a mais recente, nem acho que valia tanto a pena na época. Simplesmente era agosto e em agosto eu me sinto mais despreparada para lidar com o acaso, porque geralmente já não o estou esperando há algum tempo. Nós nos conformamos em saber o mínimo e a tirar uma série de conclusões. Eu atirei a primeira pedra, e as seguintes não sei de que direção vieram. Tem gente que diz que dói e coisa e tal. Dói nada. E torna mais fácil aceitar que lhe batam quando não dói, quando dá até vontade de sentir mais um tapa. Como se tivessem me dito que o mar é perigoso e eu, percebendo que ainda dava pé, me permitia ir adiante. De repente afundei. Era aquela sensação de roupa na máquina de lavar. Eu – entre os lençóis. Eu – nadando, boiando, tomando água. Parecia que era setembro do outro ano já, parecia mesmo que havia se passado muito tempo desde o afogamento. Agora eu já tentava sair numa boa, com braçadas tranquilas, como se pudesse alcançar a praia e não morrer nela. Na pele em brasa dela. Nos olhos do céu que mirava cega. Senti uma fisgada. É que a água ainda puxava. E falando assim, faço parecer que era verão. Mas agosto basta. O resto do tempo eu já havia perdido. Noção do desperdício eu havia aprendido – é só assoprar que passa. Vamos resgatar o que é de início: eu estava ali, num mês propício, e a criatura apareceu para conversar comigo. Levou-me nas duas horas uma vida inteira – pressinto, mas não posso afirmar, pois acredito que se passaram apenas alguns anos, e pelos homens sou considerada “jovem demais para morrer”. E outros clichês: “o que não mata, engorda”. Comi daquela boca palavras de purgatório. Fui internada no inferno – e cremei meu próprio corpo. A gente se vende por tão pouco: um passeio grátis aos domingos, um cinema em casa, umas longnecks, um papinho… Da próxima vez eu vou perguntar bem no início: o que você não faz, e o que não faz a menor diferença pra você? Eu vou direto às impossibilidades. Que dali em diante, tudo é crível. E ainda assim imprevisível.

Priscila Lopes é bacharel em relações internacionais e reside em Florianópolis. É organizadora do livro XXI poetas de hoje em dia(nte) (Letras Contemporâneas, 2009).

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