Oficina Literária

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Precisão
por Francisco Pippio

Tardezinha. O sol alaranjado, estacado no caixilho oco do quadrado da janela, tocaiava dona Laura, que se tangia desacorçoada, de um lado pro outro do único vão do barraco.

Queixava-se da demora do filho menor, vista espichada no prumo da lixeira. Receava que só chegasse junto com o breu da noite.

Para bem dizer, ela nunca aprovou a lida do rebento, catando de-comer pra ela e os irmãos no lixo, apesar da precisão.

Quando, enfim, ele riscou na moldura da porta do barraco, Laura escancarou a boca num sorriso solto, sem nem se importar com a desculpa que já vinha escapulindo das mãos abanando do menino:

– Não deu pra trazer nada hoje. Um urubu chegou primeiro!

Francisco Pippio é escritor e sociólogo ?sergipano, autor de ?As Cidades (7Letras)

Temporal
por João Carlos Ribeiro Jr.

Eu saía bem-vestido, cumprimentava um vizinho (quando havia), descia os três andares pela escada e me enfiava entre os que esperavam ônibus naquele primeiro ponto da 7 de abril. Na época, conciliava meu emprego com o trabalho político. Aproveitava para fazer reuniões entre as visitas a consultórios. Não duravam mais que cinco minutos e ocorriam em caminhadas ou em balcões de bar. Passava informações de um lado para o outro. Num bolso escondido da minha pasta, cheia de amostras de remédios e pomadas, guardava um calibre 22.

Eu morava com a Helô. Era 1970, antes da Copa, mas ela não ligava para futebol. Lia o dia inteiro, me dizia que virava as páginas com delicadeza, como o voejar de um mosquito. Só batia à máquina quando eu estava em casa.

Para evitar o exílio, ficou hospedada no meu apartamento, com ordem expressa para nunca olhar pela janela. Conversávamos bastante, baixinho. Quase sempre na sala, que só tinha um sofá de dois lugares, uma estante pequena com uma pequena estátua de elefante cravejada de minúsculos espelhos e alguns jornais empilhados ao lado. A cortina sempre fechada.

No meu quarto, um colchão no chão. Preferi deixá-la com minha cama e guarda-roupa, embora ela não tivesse muitas peças. De uma parede a outra, estiquei um barbante forte e nele pendurei meus cabides. No dia 20 de maio, duas coisas me preocupavam: a falta de tevê para assistir aos jogos da Copa e uma dor de cabeça massacrante que resistia aos comprimidos mais intragáveis. Quando cheguei em casa, procurei logo a escuridão do meu quarto.

Ela entrou no cubículo e disse que queria conversar. Eu disse que tudo bem, mas fiquei com receio de não prestar atenção. Ela falou com empolgação dos livros que estava lendo, mas reclamou do quase-cárcere. Eu tentava ouvir, ela sentou na ponta do colchão. Disse que considerava a ideia do exílio. Tinha pensado no Chile.

A dor de cabeça estava insuportável, então sugeri que fizéssemos um chá. Continuamos na cozinha, baixinho. Disse-me que estava escrevendo um texto sobre estratégia. O aumento da repressão era sensível e não podíamos dedicar todos os esforços à luta armada. Muitos estavam caindo. Concordei. Voltamos para o quarto. Dessa vez, ela deitou ao meu lado e adormeceu antes de mim.

Na manhã seguinte, fiz café. Ela me disse que tinha decidido, pediria para sair do país. Eu apoiei, preocupado, e saí.

Conversamos intensamente nos dois dias seguintes. Um esquema de segurança foi montado para a retirada dela, mas não participei. No dia do último café, abri totalmente a janela e observamos pessoas caminhando, um pouco de fumaça, janelas de outros prédios. Falou que, se eu tivesse que sair também, devia procurá-la, que queria morar comigo de novo. Assenti com um sorriso. Ergui o pulso, vi o relógio e saí apressadamente, como se fugisse de um temporal. Até hoje lamento, devia ter faltado ao serviço.

Se minha memória não estiver falhando, nunca mais ouvi alguém dizer voejar.

João Carlos Ribeiro Jr. é bacharel em ciências ?sociais pela Universidade ?de São Paulo e editor

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Novembro

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