O silêncio impossível

O silêncio impossível
(Foto: reprodução)

Luiz Felipe Pondé

Por que o justo sofre? De onde vem o mal? Quem são os donos do universo? Qual a origem da cultura ocidental? De onde vem a inspiração das leis bíblicas? Qual a religião mais antiga do mundo? Como se vivia há 4 mil anos? Como se fazia sexo? Como se bebia? Como se punia o crime?

O historiador francês Jean Bottéro responde a muitas dessas questões de forma fácil, profunda e elegante na coletânea de ensaios e entrevistas No Começo Eram os Deuses, da editora Civilização Brasileira.

Recomendo sua leitura para quem quiser conhecer um pouco melhor nossos ancestrais da Mesopotâmia (grosso modo, no território em que hoje se encontra o Iraque) entre 4.000 e 500 a.C.

A coletânea percorre vários temas, que podem ser resumidos entre teologia, moral e costumes. A origem das religiões semíticas, judaísmo, cristianismo e islamismo; as raízes do direito ocidental (código de Hamurabi); narrativas de cataclismos climáticos (a primeira narrativa poética do dilúvio bíblico nas aventuras de Gilgamesh, personagem da Mesopotâmia); a primeira história
conhecida do vinho; uma literatura da sexualidade; o nascimento da Teodiceia (a indagação acerca do sentido do mal no mundo); a origem da escrita, entre outras questões essenciais para a história, a filosofia, a literatura e a teologia no Ocidente.

A coletânea está cheia de detalhes que vão da historiografia aos hábitos cotidianos, mas sempre em linguagem agradável, sem os jargões acadêmicos herméticos.

Abrindo, na primeira entrevista, o autor volta a um de seus temas historiográficos preferidos: a origem de uma cultura nunca é única e a história é uma disciplina cujo objeto é a escrita (para ele, sem esta, estamos no terreno da arqueologia ou pré-história), que sempre remete a fontes infinitas. No caso ocidental, a origem emana dos sumérios e acádios (estes, semitas), ambos da Mesopotâmia.

Alguns ensaios versam sobre hábitos, costumes e regras de vida. Por exemplo, os povos da Mesopotâmia costumavam condenar ladrões à morte. Os homens eram chefes de família, mas as mulheres tinham direito a seu patrimônio.A origem da escrita merece uma atenção especial na medida em que revela a “transformação cognitiva” ocorrida na Mesopotâmia, que vai do pensamento apenas falado e perdido nas teias do tempo ao pensamento feito letra, que ganha uma objetividade externa à mera fala, fundando o espaço do conhecimento transmissível com “maior segurança”, sem se perder nas teias do tempo. Se a fala mergulha o passado no silêncio, a letra torna o silêncio impossível.

A sexualidade era um campo da vida coberto por larga literatura. Por um lado, a “moral sexual” era rígida (aliás, como era comum entre os semitas antigos, contrariamente à imagem de que na Mesopotâmia se vivia um bacanal contínuo), condenando o adultério, mas a falta de sexo num casamento era possível causa de separação. Segundo fontes analisadas pelo autor e citadas na coletânea (aliás, as citações são pérolas para o leitor), mulheres e homens escreveram textos eróticos. No caso feminino, o autor cita trechos nos quais uma mulher pede ao parceiro que a excite com carícias que chamaríamos hoje de “preâmbulos” da atividade sexual propriamente dita.

A prostituição, chamada pelo autor de “amor livre”, era comum, tanto masculina quanto feminina. Entretanto, o homossexualismo, mesmo sendo referido como prática comum quando praticado com servos ou amantes, não parecia ser uma atitude desejável. Um homem que se fazia possuir por outro não era bem-visto. Mas a prostituição, como narrada na saga de Gilgamesh, era muitas vezes um ato civilizador. Jovens rapazes poderiam ser introduzidos nos modos da sociedade por prostitutas experientes. Certo halo de sacralidade no “amor livre” poderia ser fato na Mesopotâmia, apesar de que  socialmente as prostitutas não deviam repartir uma mesa com mulheres de bem.

Mas o tema religioso era o essencial. São inúmeras as fontes para possíveis inspirações para a Bíblia, desde o livro do Gênesis, o Cântico dos Cânticos e o livro de Jó, literatura bíblica máxima acerca do problema do mal no mundo ocidental.

Uma questão central para a Mesopotâmia era “por que o justo sofre?”. Percebemos, só nesse detalhe, quanto somos seus descendentes.

No Começo Eram os Deuses
Jean Bottéro
Trad.: Jacques de Morais
Civilização Brasileira
320 págs.
R$ 39,90

Luiz Felipe Pondé é filósofo, professor do programa de estudos pós-graduados em ciências da religião da PUC-SP e da Faap, e colunista da Folha de S.Paulo

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Estudiosa das religiões, a inglesa Karen Armstrong propõe no livro Em Defesa de Deus (Companhia das Letras, trad. Hildegard Feist, 400 págs., R$ 52) que, em sua forma mais pura, elas eram todas iguais. Diferenciavam-se apenas no uso de rituais, sendo então uma mera questão de prática, comparável à arte ou à música.

Contudo, diz Armstrong, sua intelectualização transformou-a em teoria e a reduziu a matéria de crença, argumento e dogma. Sob essa ótica, o livro traça a história do judaísmo, do cristianismo e do islamismo com uma prosa erudita e fluente num diálogo entre fé e filosofia.

(1) Comentário

  1. REDESCOBRINDO O SER: UMA VOLTA AO PAASADO PARA ENTENDER O FUTURO: As questões universais estão sempre vindo à baila: de onde viemos, para onde vamos (se é que vamos) entre outras. De fato, se observarmos a história das mitologias e/ou religiões, poderemos notar que as vidas dos grandes Mestres são análogas com os fatos ocorridos na vida de Jesus e seus ensinamentos. Mas em cada época, contudo, possui sua moral, sua verdade, este estudo é um meio para elucidar uma realidade tão distante mas que faz parte da história, e por isso, com seu peso e sua influência. Ainda estamos na infância destas descobertas, o homem avança no campo tecnológico, mas, aos poucos, começa e compreender e dar valor aos antepassados, a sua história, já que somos, direta ou indiretamente reflexos do passado, como seus erros e acertos. O caminho da ciência se cruzando com fé e filosofia é uma via para este entendimento, e, a consciência destas questões universais, que são questões do ser humano.

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