O que diria Jesus a respeito de todos os embrulhos rasgados e amassados pelo chão na noite de Natal?
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”
É dia 21. Faltam apenas quatro dias para o Natal. Entregadores fazem fila na portaria dos prédios, cada um equilibrando uma pilha de sorridentes caixas marrons. Supermercados estão lotados. Estacionamentos estão lotados. Ônibus estão lotados. Lojas de departamentos e quinquilharias também estão lotadas. Na porta de entrada de um shopping center, onde pessoas aglomeram-se em busca do presente ideal, uma mulher sentada na calçada, sob o Sol escaldante do primeiro dia de verão, ergue a mão implorando por uma moeda. Ela tem a filha pequena dormindo entre as pernas e os braços – uma verdadeira manjedoura humana.
O dia 24 se aproxima e junto dele os preparativos para a ceia. No corredor dos frios pessoas se acotovelam à procura das aves que tenham o tamanho ideal. Frutas secas, castanhas e um vinho seco estão na lista de compras também. Muito refrigerante para os pequenos. Importante é que haja fartura. Crianças ansiosas aguardam a chegada do Bom Velhinho, vivenciando a chamada Magia do Natal. Falta pouco para que se possa distribuir as caixas revestidas com papéis e fitas coloridas.
No frenesi embalado pelo consumismo, em meio a eletrônicos de última geração, bonecas que se parecem com bebês de verdade, roupas e perfumaria distribuídos sob uma árvore decorada com muitas bolinhas, poucos são capazes de se lembrar o que é verdadeiramente o Natal.
O que diria Jesus a respeito de todos os embrulhos dos presentes rasgados e amassados pelo chão de nossas casas na noite de Natal? Será que ele – ao menos ele – seria capaz de nos lembrar sobre sua história de fraternidade e partilha?
Enquanto distribuímos presentes para pessoas que já tem mais coisas do que precisam e fazemos piadas sobre a uva passa no arroz, 20 milhões de brasileiros vivem na pobreza extrema – e isso significa uma renda mensal inferior a R$ 100,00. Como eu posso celebrar o nascimento de Cristo, transbordando excessos e mais excessos, enquanto do outro lado da rua pessoas procuram sua ceia em uma lixeira?
Que a sociedade é injusta, eu sei – e que a distribuição de toda a riqueza é injusta também. O que não posso é aceitar apaticamente o fato de que muitos não tem condições de alimentar dignamente suas famílias enquanto tantos outros esbanjam exageradamente – mesmo que eu faça parte desse privilegiado grupo.
O Espírito de Natal não é sobre soberba e gula. O verdadeiro Espírito de Natal é sobre igualdade, fraternidade e partilha – não aquela que reparte o que sobra, o que ninguém quer ou o que está rasgado, mas aquela capaz de abrir mão certos privilégios que podem ser convertidos em ações mais valorosas do que um presente caro empacotado em caixas decoradas com papel de seda e fitas. Quem sabe, assim, sejamos capazes de proporcionar que a Magia do Natal alcance outras pessoas além daquelas que decoram suas árvores e lareiras à espera do Papai Noel.
Mabelly Venson, 42, é educadora e mãe de dois.
Apaixonada pela literatura, há alguns anos tem
um caso, escancarado, com a escrita.