O outro que não é

O outro que não é
Manifestação contra a aprovação da PEC dos Gastos Públicos, em Brasília, dezembro de 2016. (Foto: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil)

 

Por Guilherme Veríssimo

“Em um mundo em que a raça define a vida e a morte, não a tomar como elemento de análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso com a ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo”, Silvio Almeida.

Ao longo da história é possível identificar nas mais diversas composições sociais uma lógica dualista onde grupos sociais estabelecem os diferentes de si como O Outro – conceito cunhado por Simone de Beauvoir. O Outro, numa lógica de oposição, será o não-semelhante, o que determinado grupo demarca como inferior, indigno de ser reconhecido como igual. Ocorre este fenômeno pois, segundo Hegel, “descobre-se na própria consciência uma hostilidade fundamental em relação a qualquer outra consciência; o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto”. Identificar esta condição na sociedade brasileira não é tarefa difícil: o machismo na hostilidade ao feminino; a homofobia na hostilidade à homossexualidade; e, principalmente, para o que interessa ao presente debate, o racismo na hostilidade à raça e cor negra.

“No Brasil”, afirma Lilia M. Schwarcz, “o sistema escravocrata tornou-se num modelo tão enraizado que acabou se convertendo numa linguagem”. Para além de um sistema econômico de trabalho forçado, a escravidão fez da raça e cor marcadores fundamentais das diferenças sociais. Como consequência, modelou condutas, tradições e a cultura do povo brasileiro; estabeleceu desigualdades sociais e, sobretudo, a ideologia racista. 

É por ser um processo histórico e político que o racismo atua também nas constituição das subjetividades e consciências. Na subjetividade, opera estigmatizando o Outro, ignorando o que há de singular, de humanidade. A identidade do negro é substituída pela identidade do Outro, pelo estereótipo. Surge a “favelada”, o “maloqueiro”, a “noiada”, o “que não tem nada a perder”. Quando já não há resquício de empatia e o medo suplanta a humanidade, está validada a violência preventiva.

Na lei está a presunção de inocência, o princípio da legalidade: não haverá crime sem lei anterior que o defina. Na rua, a presunção de culpa e o princípio da brutalidade. Se tá correndo é ladrão. Tênis de marca, cadê a nota fiscal, marginal? Dá-se a escalada e a abordagem truculenta se torna tiro na cabeça de quem segura um fuzil. Ou uma furadeira. Ou um guarda-chuvas. Ou nem segura nada, só tenta ajudar quem teve sua família fuzilada pelo Estado.

Violência policial tem alvo. Os dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública corroboram com a tese: são 17 pessoas mortas por dia, totalizando 6.220 vítimas em 2018, um crescimento de 19,6% em relação ao ano anterior. Das vítimas: 99,3% são homens, 77,9% possuem entre 15 e 29 anos; e, 75,4% são negros.

Guilherme Veríssimo, 27, é de Minas Gerais

 

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