O jogo que não vemos

O jogo que não vemos

O jogo que não vemos – crônica publicada no Jornal Correio do Povo de sábado, dia 27 de junho de 2014.

Me dei conta de que a cada jogo do Brasil eu vou a um bar com o meu amigo Evandro Affonso Ferreira – para consumo externo, ganhador do último prêmio Jabuti na categoria romance; figura adorável para os íntimos, embora ele finja ser insuportável algumas vezes.

Hoje não foi diferente. Ele senta virado para a TV que fica pendurada no alto do buteco realizando a regra de que ninguém pode perder a visão do jogo. Eu me sento de costas para o aparelho, ficando de frente para meu amigo. Não tenho isso como objetivo, mas notei que isso acontece todas as vezes. Ele de frente pra TV, eu de frente para ele querendo conversar sobre os fatos da vida nos quais o futebol é incluso como um falta. Em momento algum falamos do jogo que não vemos.

Eu e ele queremos ver algo na hora do jogo, menos o jogo: nos interessa o movimento das pessoas e as pessoas lançadas no movimento. O aglomerado é sempre excitante, isso é o que não sabe aquele que acaba por fazer parte da massa. Aquela gente que encara a TV como nós não conseguimos fazer. Aqueles que vestem camisetas amarelas que nós nunca conseguiríamos vestir. Aqueles que usam a vuvuzela sem pensar que podem estar atrapalhando algo na vida alheia. Quem se importa?

Mas não queremos ver só as pessoas. Queremos ver um ao outro. Então no meio da gritaria, escolhemos um assunto bem delicado: o amor, a literatura e a morte. Eles falam de futebol. Nós queremos vê-los falando de futebol. O amor, a literatura e a morte, devem fazer parte do futebol, ou o futebol faz parte deles, chego a pensar. Eu e meu amigo conversamos no meio do impossível.

Mas não queremos ver somente um ao outro. Nos vemos um ao outro, somos amigos felizes. As pessoas que queremos ver são pessoas bem especiais pra nós. São as pessoas que nós somos. No meio da balbúrdia, eu começo a olhar pra dentro de mim mesma porque tenho o Evandro, meu amigo, olhando para o mundo ao redor. Não estamos vendo muito bem, mas não importa, mantemos a concentração. Fico pensando se ele está olhando pra dentro dele mesmo enquanto eu o vejo virado para a televisão sem olhar para ela.

Até agora tenho ido aos bares com Evandro porque a hora do jogo tem me dado um tipo de solidão que é realmente insuportável. É um medo de ficar só durante o jogo. Aqueles homens em campo, outros assistindo e eu, que não sei nem que time joga ou se o gol foi contra, me sinto numa ilha deserta. Eu não conhecia essa coisa chamada solidão. Eu nunca dei esse nome de solidão a essa coisa. O futebol é um antídoto contra isso, como é carnaval, como é toda festa. Mas aquela parcela de solidão deve estar presente em algum lugar e precisa ser exorcizada. Talvez que as pessoas vão aos estádios porque, como eu, sintam que ficar sozinho é muito ruim. Melhor participar. Melhor estar junto. Quem duvida?

Então pensei o seguinte: existe uma solidão boa, aquela dos monges, mas ela não existe na época da copa. Na época da copa todos os mosteiros são destruídos. Os mosteiros interiores. Aí vem a solidão ruim, aquela que a gente vive pela falta de alguma coisa que ficava dentro da gente, não fora. No fundo, uma falta de nós mesmos. Ali no jogo, com as pessoas, parece que se encontrou alguma coisa. Eu, por exemplo, não vi nada e isso não me deixa muito feliz senão por imaginar que isso de não ver deve ser algum tipo de liberdade. Mas é só uma desconfiança.

Quando o jogo acaba eu não percebo que o jogo acaba. E penso que a liberdade é a parte que, por algum motivo, dói.

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