O indomável gênio barroco
Glauber Rocha em registro de Paula Gáitan (Foto: Divulgação)
Naquela aula de história, a professora explicava aos alunos o processo de descobrimento do Brasil. Quando discorria sobre a chegada dos colonizadores, afirmou que, ao aportarem por aqui, os portugueses não encontraram nada, somente índios. “Mas os índios não são humanos?”, protestou o menino ao perceber o preconceito velado. Surpresa, a professora tentou restabelecer a ordem: “Vou expulsar você da sala porque você tumultua muito!”. Aquela seria a primeira das sucessivas expulsões às quais seria submetido o pequeno Glauber ao longo de seus primeiros anos de estudo. “Ele não gostava de escola. Dizia que as professoras ensinavam tudo errado. Ele me pediu: ‘Mãe, me ensine a ler e a escrever, e com o resto eu me viro’”, comenta dona Lúcia Rocha, hoje com 92 anos. Fã inconteste do poeta Castro Alves (houve tempo em que decorou 50 de seus poemas), foi ela quem alfabetizou os filhos Ana Marcelina, Glauber, Anecy e Ana Lúcia. Impedida pelo pai e posteriormente pelo marido de estudar teatro (afinal, artista não era uma profissão benquista na sociedade baiana do início do século 20), dona Lúcia apoiou desde cedo o ímpeto criativo do filho: “Eu prometi a ele que nunca o deixaria. O pai dele não gostava, mas Glauber nasceu com a cultura na veia. Ele era um menino comum, mas, enquanto o primo jogava bola, ele pegava um livro e de repente escrevia uma crítica, desde os 9 anos”.
De fato, a vida acadêmica não o atraía. Do período na faculdade de direito em Salvador (1957-1960), certamente foi mais proveitosa a atuação como editor de revistas e suplementos culturais do centro acadêmico do que as aulas, as quais não costumava frequentar. “Ele era um agitador cultural ainda adolescente quando nos conhecemos. Sempre sabia de tudo, estava a par de quem estava fazendo o quê, lia romances novos, ensaios novos, era um homem em permanente ebulição”, recorda-se o escritor João Ubaldo Ribeiro, colega de faculdade de Glauber e um de seus grandes amigos. Àquela altura, Glauber já revelava sua prolificidade – escrevia frequentemente para o Jornal da Bahia, assumiu a coordenação do suplemento literário do Diário de Notícias e realizou suas primeiras incursões no cinema. Em 1959, com apenas 20 anos, atuou como assistente de produção nas filmagens de Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos. Ainda como estudante, viajou pelo país e conheceu muitos dos cineastas ao lado dos quais posteriormente revolucionaria a arte nacional, como o advento do cinema novo.
Arte revolucionária
“Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática no Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa.” Escrita por Glauber em 1962, essa passagem é capaz de sintetizar o cerne do cinema novo. Encabeçado por ele, o movimento congregou os ideais de jovens cineastas – críticos do cinema então praticado no país, tanto do ponto de vista estético quanto do ideológico. É válido ressaltar que o termo “movimento” não deve ser compreendido como algo acadêmico, encerrado em uma cartilha de procedimentos. Tratava-se antes de um grupo de amigos, unidos naturalmente por uma cumplicidade estética e ideológica. “Nós não gostávamos dos filmes uns dos outros por sermos amigos, e sim éramos amigos porque gostávamos dos filmes uns dos outros”, afirma o cineasta Cacá Digues, participante do movimento.
À época, filmes cômicos, alegres, cujos personagens desfilavam em carros luxuosos, atendiam à demanda de um público ávido pelo simples entretenimento e alheio às mazelas nacionais. Era então necessário combater o colonialismo cultural criando uma arte original, comprometida com os problemas de seu tempo e em tudo oposta à indústria cinematográfica vigente. Portanto, de nada valeria incorporar o conteúdo político a uma estética caduca, linear, herdada do mainstream europeu e hollywoodiano, pois seria um contrassenso. É dessa ruptura, dessa necessidade de criar uma forma tão revolucionária quanto a ideologia subjacente a ela, que nascem os filmes de Glauber – possivelmente as expressões mais bem-acabadas do cinema novo. A mitologia popular não se torna nas mãos do cineasta simples estratégia de comunicação com as massas, tampouco bandeira ideológica. O conteúdo político é alçado ao plano metafórico, permeado por uma intensa subjetividade que problematiza qualquer noção acabada de verdade ou sentido. Prevalecem a tensão, o permanente jogo de opostos, características que aproximaram Glauber da estética barroca.
Mas como pôr em prática essa nova estética sem se curvar ao padrão da grande indústria do cinema? A resposta surgiu em 1965, com a criação da produtora Difilm, na tentativa dos idealizadores do cinema novo de viabilizar seus próprios meios de produção e distribuição sem se curvar aos interesses da indústria do entretenimento. Composta de 11 sócios, entre eles Glauber Rocha, Cacá Diegues e Joaquim Pedro de Andrade, a Difilm inovou o modo de produzir cinema no Brasil: “Foi o cinema novo que introduziu no Brasil as câmeras europeias mais leves (que permitiam a câmera na mão), o filme mais sensível da Kodak, o Tri-X (que nos permitia filmar com luz natural), o gravador suíço portátil Nagra (que eliminava a dublagem)”, explica Cacá Diegues. Mas não durou muito até que a produtora se desfizesse. Falta de dinheiro – uma vez que os filmes não eram facilmente digeríveis por um público habituado aos padrões hollywoodianos –, desentendimentos entre os sócios e problemas com a censura contribuíram para a cisão em 1969. No que se refere à censura, há de se destacar o episódio de Terra em Transe (1967), marco na filmografia de Glauber. O modo profundamente metafórico com que o cineasta abordou o país fictício Eldorado incomodou os censores. O então chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SPDC), Romero Lago, justificou-se com os seguintes argumentos: “Uma mensagem ideológica contrária aos padrões de valores culturais ou coletivamente aceitos no país”, “por ser a tônica do filme a prática da violência como forma de solução de problemas sociais”.
No Brasil, o incômodo; no exterior, a consagração. O cinema de Glauber logo despertaria a atenção da crítica e do público internacionais. A exemplo de Terra em Transe, longas como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) rederam-lhe elogios e prêmios, com destaque para o de Melhor Direção em Cannes, em 1969. Como é sabido, a década de 1960 está entre as mais criativas da história do cinema, e foi nesse cenário de intensa produção cultural que sua obra obteve reconhecimento, conforme relata à CULT o cineasta norte-americano Martin Scorsese: “Nos anos 1960, quando tudo estava explodindo no cinema, nós esperávamos ser surpreendidos com os filmes. Havia tanto fermento artístico e político ao redor do mundo, uma onda após a outra, o ímpeto sempre crescendo, que era simplesmente o jeito como as coisas estavam. E mesmo com tudo isso, nada me preparou para Terra em Transe e Antonio das Mortes (título internacional de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro). A ferocidade desses filmes, a linguagem cinematográfica que deu forma à fúria contra a injustiça, que tentava falar do ponto de vista de um povo inteiro, me impressionou completamente. Eu realmente nunca tinha visto nada igual na história do cinema”. Desde aquele arrebatamento, Scorsese nunca escondeu sua admiração por Glauber, de quem se tornaria amigo. Não raro, o cineasta exibe cenas de Antonio das Mortes para seus atores, como fez, por exemplo, para o elenco de Gangues de Nova York (2002).
“Não me mistifique”
Salvo alguns episódios, Glauber viveu em um pêndulo permanente entre a consagração internacional e a incompreensão em seu próprio país. Tal incompreensão certamente contribuiu para os anos de exílio na Europa entre 1969 e 1976, sem contar os períodos esparsos em que viveu no exterior. Suas obras-primas foram atacadas pela crítica nacional, sobretudo por causa das animosidades políticas suscitadas por ele – que não se furtava a confrontar quem quer que fosse, da direita ou da esquerda. Em contrapartida, o respaldo internacional foi durante muitos anos o trunfo que Glauber tinha em mãos para ser ouvido no Brasil e atirar fogo para todos os lados.
O grande revés nesse movimento pendular deu-se quando seu longa-metragem A Idade da Terra foi duramente criticado no Festival de Veneza, em 1980. Glauber vociferou, acusando os organizadores de terem se vendido ao imperialismo e ao cinema de baixa qualidade. Mas a incompreensão italiana certamente o abalou. Extenuado de sua cruzada em prol do cinema brasileiro e profundamente magoado com a hostilidade de que era vítima em seu próprio país, o baiano de Vitória da Conquista paulatinamente perdeu suas forças e adoeceu seriamente no ano seguinte, quando morava em Portugal. “O que Glauber sofreu mais no Brasil foi patrulhamento ideológico. A rejeição, os ataques pessoais e mesquinhos… Hoje as pessoas esquecem, mas eram ataques da pior categoria. Isso eu sei porque convivi com ele, estava em Portugal quando ele estava morrendo. Eu sei que ele não queria voltar ao Brasil, estava magoadíssimo com sua terra. Ele tinha um amor quase místico pelo Brasil, pelas coisas brasileiras. Quando falava, por exemplo, em Villa-Lobos, sua voz ficava tremida de emoção porque via Villa-Lobos como uma das mais elevadas expressões da arte brasileira”, relembra João Ubaldo Ribeiro. As circunstâncias de seu retorno ao Brasil foram o avesso do que se esperava para um expoente do cinema nacional. Extremamente debilitado, Glauber desembarcou no Rio em 21 de agosto e faleceu na manhã do dia seguinte, em decorrência de uma infecção generalizada.
Visionário ou incompreendido, o fato é que, passados quase 30 anos de sua morte, perdura no Brasil a imagem de um cineasta hermético, espécie de mito restrito a meia dúzia de cinéfilos – algo que ele definitivamente não desejava. “Eu acho que existe certa conspiração, ele mesmo fala disso, uma conspiração da mediocridade em colocá-lo nessa função de mito. Era tudo o que ele não queria. Ele dizia sempre ‘não me mistifique’ e essa é a angústia que eu herdei. Você vê o pai morto, uma obra apodrecendo e aquele grande sentimento de indignação. Tenho de dar possibilidade de ele ser visto e de essa história ser relida ou mesmo lida pela primeira vez”, afirma Paloma, filha mais velha de Glauber. A exemplo de Paloma, Martin Scorsese é contrário ao hermetismo associado à obra de Glauber e toma como justificativa a beleza e o choque propiciado pelos filmes do brasileiro, características ao alcance de qualquer ser humano sensível ao fenômeno artístico: “Eu sou alguém que ama seus filmes, vindo de uma cultura completamente diferente. Falo sobre dividir experiências pessoais, a experiência da percepção, o momento em que o crítico literário norte-americano Edmund Wilson chamou de ‘o choque do reconhecimento’. Foi isso o que senti quando vi os filmes de Glauber Rocha pela primeira vez. É o reconhecimento de vida e morte em um corte, o mistério, o terror e a beleza da arte. E não há nada hermético ou ‘especializado’ nisso”.