O feminismo e a mulher idosa

O feminismo e a mulher idosa
Celebração pelos 20 anos da Lei da Cotas para Mulheres, instituída na Argentina em 1991 (Foto: Patricia Rangel/Partido Frente Grande de La Republica Argentina)

 

Por Maria do Carmo Guido Di Lascio

A década de 60 do século passado ficou marcada como uma nova era das revoluções. No Brasil, os idosos do século 21 vivenciaram eventos históricos fundantes da nossa sociedade como a renúncia do Presidente Jânio Quadros em 1961, o golpe civil-militar de 1964, o Ato Institucional número 5 – AI 5, em 1968.

Internacionalmente, os eventos dos anos 60 mudaram o rumo da história. Nos EUA, o Presidente John Kennedy foi assassinado em 1963, seu irmão, o senador Bob Kennedy, foi assassinado em 1968, assim como o líder dos direitos civis, Martin Luther King.

Rebeliões e protestos contra o capitalismo, liderados pelo movimento estudantil fizeram história, sacudiram os regimes, mas não viraram a mesa. Em 1968, o ativismo estudantil foi protagonista do Maio de 68 na Franca, da Primavera de Praga, do massacre dos estudantes em Tlatelolco no México, da Passeata dos 100 Mil e do Congresso de Ibiúna no Brasil.

Os movimentos políticos estiveram em sintonia com os movimentos culturais e de comportamento. No início da década, em 1962, foi lançado um dos maiores fenômenos da música pop, os Beatles. Logo depois dos Beatles, surgiram os Rolling Stones. No Brasil, também no início da década, surgiu a Jovem Guarda e a MPB, que produziram os icônicos Festivais da Canção. O Festival de Woodstock, que aconteceu em 1969 nos EUA, foi um dos marcos da contra cultura.

Em 1960 a pílula anticoncepcional foi lançada comercialmente nos Estados Unidos. No Brasil, foi lançada em 1962. A pílula anticoncepcional significaria uma verdadeira revolução nos hábitos sexuais do mundo ocidental, liberando as mulheres para separar a sexualidade da reprodução. O movimento feminista se apropriou da liberdade sexual proporcionada pela pílula e as mulheres protagonizaram a revolução da década de 60.

A primeira onda do feminismo teve como principal teórica a americana Betty Friedan, que em 1966 criou, nos Estados Unidos, a Organização Nacional de Mulheres. O movimento feminista reivindicava principalmente a igualdade de gênero, de direitos civis e direitos trabalhistas. No Brasil, o movimento se organizou institucionalmente a partir de 1975, com a criação do Centro da Mulher Brasileira no Rio de Janeiro e do Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira em São Paulo.

“O Ano Internacional da Mulher instituído pela ONU em 1975 foi um ponto de referência fundamental para o surgimento do novo movimento feminista no Brasil, por ter propiciado, numa conjuntura política altamente repressiva, uma oportunidade e um espaço de reunião e mobilização. Nesse momento, grupos que já vinham se reunindo informalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro desde a primeira metade dos anos 1970 — compostos por mulheres de diferentes gerações, de formação universitária e pertencentes a camadas sociais privilegiadas — estabeleceram contato pela primeira vez, na perspectiva de aproveitar a cobertura e a proteção de um organismo internacional para promover a questão da mulher no Brasil”, segundo o verbete do movimento feminista do acervo da FGV.

O feminismo se tornou um dos mais importantes movimentos políticos da atualidade. A luta contra discriminação e contra a submissão das mulheres aos valores e padrões da sociedade patriarcal, abriu espaço para o protagonismo feminino no trabalho, na cultura e na política. A luta continua, pois apesar dos avanços, os padrões da sociedade de supremacia masculina ainda mantém grande parte das mulheres como vítimas de todo o tipo de violência e opressão.

As lutas feministas contemporâneas desenvolveram as suas vertentes identitárias como o feminismo negro, o feminismo radical ou marxista, o feminismo liberal, o feminismo interseccional e outros mais. Dentre os mais importantes, destaca-se o feminismo negro, interseccional, que combate a pesada carga de discriminação das mulheres negras – raça, gênero e classe social. Angela Davis é o nome mais expressivo do movimento. No Brasil, onde negros e pardos representam quase metade da população, a luta feminista incorpora a discriminação de gênero e raça à luta de classes, como o desemprego, a marginalidade e o genocídio da população negra e jovem. Marielle Franco foi a liderança que virou mito. O feminismo radical ou feminismo de esquerda, parte do determinismo econômico, que vincula a discriminação de gênero aos valores fundantes do capitalismo – as mulheres como reprodutoras da força de trabalho. Silvia Federici, historiadora feminista italiana, amplia a análise marxista, incluindo a dona de casa como sujeito da reprodução capitalista. O feminismo liberal reivindica igualdade nos direitos civis básicos, como nas relações de trabalho e na participação e gestão das políticas públicas e do estado.

As mulheres que construíram esta jornada de lutas e que hoje são idosas, não se veem representadas nas pautas feministas contemporâneas. Ainda não desenvolvemos a nossa vertente identitária. A antropóloga Guita Grin Debert, afirma que “o desinteresse das feministas pela velhice, tem sido explicado pelo medo de envelhecer e pela repulsa ao corpo envelhecido, próprio do sexismo que marca as sociedades de consumo na sua glorificação da juventude e na destituição que se opera no poder dos velhos. … Como então explicar o seu silêncio em relação a esse período da vida? Por que as enormes barreiras criadas para as mulheres mais velhas no mundo do trabalho, nos padrões de beleza, na vida sexual, entre tantas outras formas de discriminação, não são objeto de reflexão pública e das militâncias dessas mulheres que foram tão ativas na crítica feminista?”

Mulheres idosas sofrem uma dupla carga de discriminação. Em nossa sociedade, o ageísmo, preconceito em relação aos idosos, está presente dentro do próprio grupo. Se assumir velha ou velho é socialmente inaceitável para a maioria das mulheres. Demonstra uma aceitação das eventuais fragilidades atribuídas à velhice, da perda da capacidade de sedução e reprodução e a perda de pertencimento ao mundo da competição em todos os níveis. Para os homens, as perdas são igualmente devastadoras, acrescidas das perdas da virilidade juvenil.

As mulheres idosas são um grupo populacional em expansão no Brasil e no mundo. Entretanto, o feminismo está focado nas pautas relacionadas às mulheres jovens. Pautas dos direitos reprodutivos, do aborto, do assédio sexual, do estupro, da alienação parental, do feminicídio. Pautas estas que são bandeira de lutas de todas as mulheres, mas que precisam ser estendidas às lutas das idosas.

No Brasil, a reforma da previdência vai afetar as mulheres, aumentando a idade mínima para requerer a aposentadoria e o tempo de contribuição. As mulheres vão ter que trabalhar mais. O mercado de trabalho discrimina os idosos e principalmente a mulher idosa. Comprovadamente, a empregabilidade dos idosos(as) é mais difícil do que para os mais jovens. As mulheres também serão afetadas no cotidiano das famílias pois as pensões serão reduzidas. Na faixa etária de 60+, quase 50% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres. Estas mulheres além de serem o suporte financeiro das famílias, em tempos de desemprego em alta, sustentam filhos, netos e são cuidadoras. Devido à sua fragilidade diante do machismo, a mulher idosa é submetida à violência física, psicológica e patrimonial, por parte da própria família.

Para além das questões de classe social, as mulheres idosas precisam assumir o lugar de fala na afirmação de seu protagonismo no movimento feminista.

Germaine Greer, a controvertida australiana, ícone do feminismo, autora do livro A mulher eunuco, lançado em 1970, deu entrevista à imprensa internacional sobre a omissão das feministas em relação à mulher idosa
“O feminismo moderno é ageísta e a sociedade não tem respeito pelas mulheres idosas”.

Maria do Carmo Guido Di Lascio, 71, é socióloga aposentada e pesquisadora autônoma do tema do envelhecimento

 

 

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