O doce gosto do sangue dos outros
Schadenfreude é um desses termos alemães complicados de pronunciar que conseguem expressar uma ideia tão universal que invade o vocabulário de outras línguas. Alegria com a desgraça alheia seria um tradução mais próxima da literal. Eu prefiro, considerando as cenas trágicas que assistimos desde a última quarta-feira (29/10), traduzi-lo como o doce gosto do sangue dos outros.
A megaoperação executada pelo Estado do Rio de Janeiro, considerada “um sucesso” pelo Governador, atingiu a marca do maior massacre em massa do país, superando o do Carandiru. Mais de 120 mortos. Mas quais os critérios utilizados para essa avaliação? Se a medida for o número de execuções sumárias, não há dúvida. Já se a referência for o atingimento dos objetivos, pouco sabemos quais eram exatamente. Ou o objetivo era mesmo o de matar sem julgamento o maior número de jovens do tráfico, independente do que foi nomeado de “danos colaterais” – morte de jovens pretos, pobres e periféricos e de policiais envolvidos na operação? O mínimo que se pode dizer é que Claudio Castro conseguiu, efetivamente, elevar do dia para a noite sua popularidade decadente, e pautar o tema que será a bandeira da extrema direita nas próximas eleições: segurança pública, confundida com matanças espetaculares ineficazes e repetitivas. Enquanto isso, a pilha de corpos aumenta.
E é bem isso que chama a atenção: o júbilo de parte significativa da população brasileira com a imagem dos corpos mortos depositados em linha. Schadenfreude. “Bandido bom é bandido morto”, “deveriam ter matado mais”. Como é possível olhar a foto dos cadáveres e gozar com uma imagem digna de um filme de terror? É preciso uma espécie de alucinação negativa que faz com que se desconsidere o cenário mais amplo da foto – a paisagem miserável do complexo da Penha, a precariedade material exibida pelas mulheres, jovens e crianças que olhavam a cena ou reconheciam parentes mortos, a dor das mães – para se convencer de que morreram apenas criminosos perversos e desumanos que não mereciam nem julgamento, nem outro destino.
A alegria com a desgraça alheia é proporcional ao ressentimento social de cada um. A vida vale pouco nesse país, o salário e os rendimentos valem pouquíssimo, o poder público investe menos que o necessário em educação, saúde, qualidade de vida e segurança, e a classe média brasileira, desalentada e desesperançada, se rejubila com o doce gosto do sangue derramado nas periferias das grandes cidades.
E o círculo vicioso se alimenta desse sangue. Quanto mais miséria, desamparo e angústia, mais o desprezo pela vida é bem recebido pelas almas penadas que, assim, tem a ilusão de que são melhores que o morto da foto. Esse é o combustível corrompido que alimenta nossa cultura do ódio de cada dia.
O problema é que quando o Estado de direito se torna Estado de exceção, nunca se sabe quem será o cadáver de amanhã. E a questão que efetivamente me inquieta é como o Governador do Rio consegue repousar a cabeça no travesseiro, à noite, e dormir?
Daniel Kupermann é psicanalista e professor da USP





