O desejo cabe nas palavras?
Em várias passagens de sua obra, Freud retoma a interpretação de um sonho de Alexandre da Macedônia, realizada por Aristrando, considerando-a como “o melhor exemplo de interpretação de sonhos que nos chegou da Antigüidade”. Na décima quinta de suas Conferências introdutórias à Psicanálise, de 1917, Freud refere-se a esse episódio nos seguintes termos:
“Repetirei para os senhores um sonho que teve importância histórica, e que -Plutarco e Artemidoro de Daldis, com ligeiras variações, referiram acerca de Alexandre Magno. Quando o rei estava sitiando a obstinadamente defendida cidade de Tiro (322 a.C.), sonhou que via um sátiro dançando. Aristrando, o intérprete de sonhos, que se encontrava presente com o exército, interpretou o sonho dividindo a palavra ‘Satyros‘ em [sa Turos] (tua é Tiro) e, portanto, prometeu que ele iria triunfar sobre a cidade. Por esta interpretação, Alexandre foi levado a continuar o cerco e finalmente capturou Tiro. A interpretação, que possui uma aparência bastante artificial, indubitavelmente era a correta.”(1)
O caráter artificial, apontado por Freud, da interpretação fornecida por Aristrando decorre de sua concepção supersticiosa das relações entre o desejo e sua realização. Como tantos outros intérpretes de sonhos da Antigüidade, Aristrando confundia a realização do desejo através das fantasias oníricas, com um anúncio de sua efetivação na realidade. Evidentemente, tais interpretações tendiam a ser bem acolhidas pelo sonhador, uma vez que profetizavam a satisfação futura de suas aspirações.
Dessa forma, a admiração de Freud pela interpretação fornecida por Aristrando ao sonho de Alexandre por certo não decorria da bem-sucedida indicação fornecida pelo intérprete quanto à conduta bélica a ser tomada pelo general, mas da demonstração, por meio de um respeitável exemplo histórico, de seu próprio procedimento técnico, segundo o qual o desejo inconsciente pode ser resgatado quando o relato das associações provocadas pelo sonho é escutado ao pé da letra. O intérprete antigo não se havia deixado fascinar pela imagem fantástica evocada pelo relato do sonho pelo poderoso rei. Não se tratava de buscar – por via da inspiração – a alusão apropriada à qual remeteria a fantasmagoria do sátiro dançarino. Tampouco o sonho fora lido através de uma grade fixa de significados, à maneira de um “dicionário dos sonhos”. Tratava-se tão-somente de se deixar afetar pela escuta da literalidade do relato onírico. O relato, enquanto matéria-prima para a interpretação, tinha importância menos pelo enredo a que aludia do que pela consistência concreta de sua enunciação, que exprimia muito mais do que as intenções conscientes do sonhador. No trabalho interpretativo de Aristrando, Freud identificara a antevisão de que o desejo do sonho se expressa para além de uma psicologia das imagens. O desejo inconsciente se manifesta inquietantemente no dito do próprio sonhador, sem que este disso se dê conta. O sujeito fala mais do que supõe, exprimindo algo da verdade de seu desejo independentemente de suas intenções lingüísticas racionais.
Tal epifânia do sujeito do desejo através do relato do sonho está em intrínseca dependência das potencialidades expressivas da língua do sonhador. O sonho do sátiro remetendo aos desejos de conquista da grande cidade enraizava-se na imersão de Alexandre no universo da língua grega. A dependência do sonho em relação a uma determinada língua é tamanha que Freud chega a afirmar, apoiado em Sándor -Ferenczi, -que “cada língua possui sua própria língua de sonhos”(2).
O sujeito freudiano revela-se, portanto, pela apropriação singular que faz do tesouro da língua que tem à disposição. É ao recortar de maneira única a infinita possibilidade expressiva da linguagem que um sujeito desejante manifesta-se enquanto tal. Ele não está propriamente representado no discurso que pronuncia. Ele é, antes, o sujeito que elege uma específica composição significante – entre infinitas possíveis – constituindo-se por esse ato, como uma singularidade.
O desejo realizado no processo onírico não se esconde, portanto, nas supostas profundezas da mente, mas, antes, dispersa-se pela superfície da enunciação concreta. É nesse plano que Freud procurará os indicativos da Outra Cena psíquica, inconsciente, fantasmática, na qual se inscreve o desejo.
Freud encontrará precisamente nesse ponto a causa do fracasso de seus predecessores em seus esforços para interpretar os sonhos. Para eles, os sonhos constituíam alegorias aludindo a uma outra realidade a ser desvelada pela intuição do intérprete ou por uma chave fixa de interpretação. Para Freud, por sua vez, as cenas oníricas são uma escrita através de imagens, hieróglifos que contam – enquanto significantes encarnados no imaginário onírico – sobre o desejo, sua história, suas raízes infantis e corporais e sobre a fantasia inconsciente em que se inscreve. Como expressa Freud na abertura do capítulo VI de A interpretação dos sonhos: “O conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução. […] O conteúdo do sonho é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho.”(3)
Por outro lado, a tese freudiana, segundo a qual os sonhos são atos psíquicos dotados de sentido e que este pode ser resgatado por meio de um método racional de interpretação, contém, contudo, algo de profundamente escandaloso e, mesmo, de violento. Trata-se, aqui, de uma interpelação radical, pois coloca em xeque a legitimidade mesma da pretensão de que o desejo possa ser integralmente interpretado: os desejos cabem nas palavras que pretendem traduzi-lo? Estas são, de fato, capazes de exprimi-lo sem resto, de forma integral? Em última instância, não consistiria a interpretação dos sonhos em um mal-fadado projeto racionalizante, de objetivação da subjetividade pela explicitação do desejo? Qual é o destino do desejo – essa aspiração fundamentalmente irrequieta, sutil e metonímica, que parece saltar de objeto em objeto a cada vez que -tentamos capturá-la – quando buscamos aprisioná-lo em uma proposição interpretativa? E, se não conseguimos explicitá-lo com nossa vã linguagem, não seria melhor, como propõe Wittgenstein, sobre ele silenciar do que aviltá-lo com nossas pretensas interpretações? Indubitavelmente Freud termina por se confrontar com essas questões ainda que não as tenha formulado nesses termos. Elas emergem e se impõem como decorrência da própria aplicação do método freudiano de interpretação dos sonhos.
Por duas vezes em sua Traumdeutung, Freud repete quase literalmente a seguinte constatação: mesmo nos sonhos mais minuciosamente interpretados, as correntes associativas convergem para pontos de obscuridade, os quais resistem a se deixar traduzir sem resto pela linguagem. É precisamente nesse resto que o sujeito reconhecerá a fonte intraduzível da qual brota o desejo onírico e todas as suas associações no plano lingüístico – uma espécie de micélio do qual partem os fios associativos, o “umbigo do sonho”, ponto onde este mergulha no Não-reconhecido (das Unerkannten)(4).
Estranho resultado, pois, o da interpretação dos sonhos freudiana. Dos esforços de desvelamento do desejo inconsciente por meio de livres associações evocadas pelo sonho no sonhador, o efeito não é a emergência da última palavra que revelaria integralmente a verdade do desejo, mas o encontro com o “umbigo do sonho”. O sujeito descobre, ao final de tal procedimento, tanto uma rede associativa que remete – em termos de vetorização de seu movimento – ao sentido do sonho, quanto a um núcleo intraduzível, mas não por isso menos evidente, sobre o qual ancora-se o desejo. Provavelmente, o mais radical da proposta clínica freudiana reside na possibilidade de um deslocamento tópico da localização do ser, propiciado pela busca da verdade sobre o próprio desejo, desvelado em seus sonhos: trata-se da possibilidade de se passar a existir a partir do ponto onde o sujeito tem a certeza de desejar, ainda que as palavras se revelem sempre incompletas para exprimir “o indestrutível desejo”(5).
Em nossos tempos de alta tecnologia, de ciência triunfante e de incessantes progressos médicos, genéticos e cibernéticos, a proposta de um método racional de interpretação dos sonhos, tal como formulada por Freud no alvorecer do século 20, pode parecer prosaica e extemporânea. Ela revela, contudo, o caráter insuportável da pretensão de se dizer a última palavra que traduziria integralmente um sujeito, seja em um jogo de linguagem neurobiológico, seja em uma retórica psicologizante. Afinal de contas, quem toleraria ser completamente explicado pela razão e pela lógica totalizante do outro?
A conhecida máxima segundo a qual “Freud explica” revela-se, assim, insatisfatória, incorreta e, em última instância, profundamente antifreudiana. Se a obra do autor de A interpretação dos sonhos, de quem nesse ano comemoramos o sesquicentenário de nascimento, tem alguma relevância, esta repousa na descoberta dos efeitos do contato existencial com o intraduzível do próprio desejo, obtida através do esforço de dizer toda a verdade subjetiva até o fim. É o fracasso de tal projeto de tradução integral pela linguagem, levado ao extremo de sua tensão, que desvela ao sujeito o lugar de onde nascem seus próprios sonhos. Nesse sentido, a obra de Freud é a denúncia de que toda pretensão à última palavra sobre o sujeito é sempre uma impostura.
Notas
1 FREUD S. [1917], Conferência XV: Incertezas e críticas, in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XV, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 236.
2 Cf. FREUD S., A interpretação dos sonhos, in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro, Imago, 1976, pp. 106-107.
3 FREUD S., A interpretação dos sonhos, in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 295-296.
4 FREUD S., A interpretação dos sonhos, in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 119 e vol V, p. 560.
5 Expressão utilizada por Freud no parágrafo que encerra A interpretação dos sonhos: “… a antiga crença de que os sonhos prevêem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos decerto nos transportam para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível (grifo nosso) à imagem e semelhança do passado”.
Mário Eduardo Costa Pereira é professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade de Campinas (Unicamp). Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da FCM-UNICAMP. Professor do curso de Psicanálise do Instituto Sedes SAPIENTIAE, de São Paulo. Professor da Casa do Saber de São Paulo.