O cortiço de nossos dias

O cortiço de nossos dias

Contos inéditos de Dalton Trevisan testemunham a degradação dos excluídos

Fabiano Calixto

“Olha, bem, ele tá vivo… Vejam até mexendo a cabeça! Tá vivo!
Me inclino e – oh, não – afogo um engulho: ali um ratão negro pinicando a orelha do meu querido irmão. Por isso balançava de leve a cabeça.”

Essa é uma das fortes cenas de “A Desgraça de Zeno”, um dos contos de Violetas e Pavões, nova coletânea de Dalton Trevisan.

O livro é composto de 22 contos nos quais o autor esmiúça a vida marginal (aquela à margem) e sua fauna, e, talvez como contrapeso, também compõe momentos de extremo lirismo e erotismo. Ao mesmo tempo em que há malandros, prostitutas, psicopatas e gente sem perspectiva em geral, também há a mulher que sonha imensos orgasmos com outra, sem que essa exista de fato; a névoa que veste os sonhos é o leito onde o ato de amor ocorre (“Lábios Vermelhos de Paixão”).

Os contos, por meio da famosa lavoura elíptica do autor, tecem uma sequência binária, as violetas e os pavões (que ecoam a todo momento a ideia de “putas” e “cafetões”, que por sua vez guarda o sentido de hierarquia entre o opressor e o oprimido), as personae masculina e feminina, a violência e o lirismo, que vão se revezando em sua cruzada à perene vertigem da experiência humana. Um livro habitado pelos fantasmas que, talvez, mais assombrem o nosso tempo: o medo e a solidão.

Um dos contos mais interessantes é “Mocinha Perdida de Amor”, que abre a coletânea. A narradora descreve o encantamento de sua colega Denise com a sensação de ser a musa de um poeta, um gentleman, mas incompetente na arte de compor versos. Com algum conhecimento de causa, a narradora descreve o tal “poeta”: “Muito fino, muito culto, muito cavalheiro. Mas, ai de mim, muito mau poeta. E isso – aprendi com o senhor aqui citado – não merece perdão”. O “senhor” ali citado é outro poeta, este, sim, talentoso, cuja musa é ninguém mais senão a narradora que, entre o esnobismo e o orgulho, confere desprezo ao poeta “da outra”, que jamais poderia chegar ao êxtase.

Já em “Elas Cantam Só para Mim”, outro bom momento do conjunto, são descritas as desventuras de um jovem fotógrafo que só queria “um fuminho pra relaxar” e entra em uma enrascada com a guarda municipal. Quando finalmente escapa, é pego pelo mesmo motivo, desta vez pela polícia militar. “Toda essa confusão por quê? Um simples fininho.” Ali é mostrado o abuso de poder e a corrupção na corporação – quando o primeiro investigador chega e vê uma correntinha de ouro no pescoço do fotógrafo: “– É de ouro”, e quando a resposta é sim: “Só tem um acerto. Ela… ou o micro”. O conto movimenta-se nessa direção – o pobre personagem e seu azar duplo, ao ser enquadrado duas vezes pelo mesmo motivo: relaxar do inferno do dia a dia. Aqui e ali, sob a camada grossa do tema, situações hilárias e até certo lirismo, que fazem desse conto um dos melhores do livro.

A miséria humana

As violetas e os pavões fazem parte do cenário cotidiano de Curitiba e, aqui, funcionam como uma metáfora repleta de significados nefastos. Objetos líricos que testemunham a fatídica e inevitável miséria do ser humano numa capital do país. Por meio dessa imagem, Trevisan foca a degradação da classe pobre, dos miseráveis cada vez mais miseráveis e cada vez mais conformados e adaptados a essa danação. Sujeitos para quem o sentido de lei ou justiça terrena não tem a menor serventia. Somente a crença na providência divina (numa chave de total despolitização) pode acalentar a alma dessas pessoas, já que, claro como está há décadas, essa imensa parcela da população é completamente esquecida pelos órgãos que deveriam zelar pela manutenção da justiça e do progresso de todos, mas só o fazem para poucos.

O personagem principal desses contos é, portanto, “a sensação de cortiço” que impregna o corpo, a mente e a alma dos esquecidos; esses pobres-diabos cuja existência serve apenas como base de uma estrutura cujo cume é formado pelos poderosos e endinheirados que, para que seu banquete diário nunca falte, fazem a manutenção intensiva e extensiva da miséria.

Aquela ambientação que servia de moldura ao clássico de Aluísio Azevedo O Cortiço (1890), cuja influência sobre a prosa brasileira posterior é gigantesca, habita também este livro. Só que, aqui, é relida com uma prosa cujo hiper-realismo é corrosivo e não mediador. Não há esperança concreta. O cortiço destes contos é mais assolador, pois é o cortiço da alma também e, mesmo que o local das ações seja Curitiba, em nossos dias o cortiço é em todo lugar.

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