O absurdo como detalhe doméstico

O absurdo como detalhe doméstico

Contos de Tony Monti revelam um projeto literário vigoroso em formação

Ricardo Lísias

A coletânea de contos eXato acidente mostra que Tony Monti está atingindo a maturidade literária. São 16 histórias de tamanhos e estilos variados, com elementos recorrentes notáveis, o que indica a presença de um projeto literário refletido e consequente. A arquitetura cuidadosa, o trabalho medido e bem pesado e as questões sempre envoltas pela tensão que caracteriza nossa época, nervosa e violenta, demonstram que estamos de fato diante de uma literatura vigorosa em formação.

Quase todos os contos tratam da classe média pretensamente ilustrada, e muitos deles se passam em um dos cenários urbanos privilegiados desse estrato: a capital paulista. Mesmo que na maior parte das vezes apareça apenas aludida, é na cidade de São Paulo que se concentram, por exemplo, os pseudointelectuais atrás de um filme de arte, uma das figuras mais bem retratadas pelo livro. O autor demonstra que por trás da postura esclarecida, levemente superior e autoconfiante, estão muita solidão, certa dificuldade para entender os próprios hormônios e uma carga bastante elevada de frivolidade.

A melancolia percorre o livro e às vezes se manifesta em um erotismo desavisado e deslocado, como no improvável estudante que, enquanto observa a namorada nua e sonolenta, redige uma crítica a um filme alternativo e vai se sentindo, aos poucos, como se estivesse testemunhando a própria nouvelle vague – em Paris, é claro. Diverte muito ver os paulistanos ilustrados na rua Augusta, descoladíssimos, na fila do novo filme elegante, achando-se propriamente na capital francesa. Parte das personagens de Tony Monti pode ser encontrada nesse ambiente. É difícil saber, aliás, por que o público do circuito alternativo de cinema de São Paulo, representativo da superficialidade de nosso tempo, nunca apareceu na literatura. É provável que a resposta deva conter um argumento meio constrangedor: é esse mesmo público que não apenas consome a literatura contemporânea como, mesmo que adore falar de bandidos e marginais, também a produz. 

Reposição do absurdo

O absurdo percorre também muitos dos contos, mas desta vez aparece reatualizado. A propósito, parece-me que um dos maiores ganhos de eXato acidente, em termos literários, é justamente a reposição desse conceito, observado como um elemento básico da paisagem. O absurdo de Tony Monti é parte de um cotidiano espantosamente natural. Uma das melhores mostras disso está no muito bem feito “O atentado ”. O conto se estrutura por meio da divertida acumulação de siglas. A realidade é totalmente distinta da nossa, muito próxima dos textos de ficção científica, mas as siglas vão se aproximando das do cotidiano, até que o absurdo deixa de ser um elemento de espanto, e aparece como trivial. A APEC, a LimP, a UnE e um inspiradíssimo PdF torna tudo muito íntimo e, se não mesquinho, banal.

Outros elementos recorrentes são o jogo de xadrez – sua ordenação na verdade alucinada – e sobretudo os animais. Tigres e outros felinos servem para denunciar uma evidente filiação literária de Tony Monti, mas vão além: de novo, trata-se de um recurso para mostrar que o absurdo é só um detalhe doméstico.

Todos os textos são muito bem-acabados, mas há uma pequena novela extraordinária: “Errabundos, um roteiro em ficha corrida”. Trata-se, sem dúvida, de uma das melhores ficcionalizações da violência urbana brasileira. Dado que quase todos os escritores contemporâneos tentaram o mesmo, habitualmente naufragando em clichês inacreditáveis, o ganho de Tony Monti é dobrado. O texto se refere aos atentados que há poucos anos pararam por um dia a cidade de São Paulo. São fragmentos descolados, pouco precisos e muito tensos, em que se unem a corrupção policial, o crime organizado e fatores da psicologia humana. Tudo construído com muito acerto na escolha vocabular e em uma arquitetura formal rara. De fato, essa novela é uma pequena jóia em meio não apenas à literatura, mas aos rios de palavras que tentaram compreender os atentados da facção criminosa PCC.

eXato acidente parece ser mais um argumento para comprovar que a literatura brasileira está finalmente saindo do fundo do poço onde se enfiou nos últimos anos. Já é possível perceber, aqui e ali, com certa timidez e poucos textos, um conjunto mais coeso de obras bem-acabadas quanto à técnica, conscientes dos problemas relacionados tanto ao próprio trabalho literário quanto à sociedade contemporânea. Ou, para ser preciso: conscientes da noção de que ambos não se diferenciam. O começo está sendo melhor que o esperado.

eXato acidente
Tony Monti
Hedra
94 págs.
R$ 20

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