O aborto, os conservadores e a democracia

O aborto, os conservadores e a democracia

 

 

Os debates sobre a questão do aborto são sazonais e provocados por algum acontecimento social ou político. Da última vez em que houve um grande debate nacional sobre o tema estávamos em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou favoravelmente uma ação sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. Antes disso, houve um debate sobre o tema no intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2010.

 

A questão do aborto como desacordo social

 

O que eu chamo de questão do aborto envolve uma série de problemas sociais. Há o problema legal da garantia e da extensão ou redução do direito ao aborto legal. Há uma série de problemas sociais relacionados à desigualdade de classe no acesso a serviços médicos seguros para os procedimentos de interrupção de gravidez, ou relativos ao fato de se tratar de direitos que afetam sobretudo a população feminina. Há a leitura do problema como sendo de políticas públicas, isto é, de como o Estado deve interferir para lidar com uma questão real e concreta de saúde pública, uma vez que as pessoas abortam, autorizadas ou não, amparadas ou não, com toda uma série consequências que conhecemos. E há, dentre outros, dúvidas e divergências morais, religiosas ou filosóficas relacionadas à origem da vida, às liberdades humanas, aos direitos reprodutivos, e até, como no caso dos fetos sem cérebro, ao que pode significar uma vida humana digna.

Como se depreende do emaranhado de problemas relacionados à questão, trata-se de algo complexo, multidimensional e que costuma dividir as sociedades modernas. No mínimo, no atual estado das coisas e na maioria das sociedades avançadas, a questão do aborto é um desacordo moral permanente: quer dizer, é uma daquelas situações em que os lados que divergem sobre um assunto não apenas conseguem arregimentar um volume importante de pessoas, como ainda consideram ter boas razões para defender a superioridade da própria posição.

Quando uma das partes se torna numericamente pouco significativa ou sucumbe aos melhores argumentos do outro lado, temos uma hegemonia ou um relativo consenso. Não é caso do tema do aborto no Brasil, nem na década em que a esquerda controlou o governo e pôde influenciar as políticas públicas de saúde, muito menos agora quando a direita ultraconservadora chegou ao poder.

Por isso, o tema fica dormente, mas entra em combustão à menor faísca. E o que não tem faltado ultimamente, neste momento em que os conservadores acham que são a maioria porque têm do lado deles o governo e dois juízes na Suprema Corte, são faíscas, brasas e labaredas para incendiar o debate público.

 

Conservadores e liberais na esfera pública

 

Dois fatos recentes deram início à ignição e confrontaram liberais e conservadores na esfera pública. No primeiro, descobre-se que uma criança de 11 anos, grávida, foi submetido a um ultrajante constrangimento por parte de uma promotora e de uma juíza, que deixaram de lado o seu papel de operadoras da Lei para se transformar em pregadoras de uma ideologia, a sua ideologia adversária do aborto. No segundo fato, certos jornalistas, em conluio com pessoal interno de um hospital brasileiro, resolveram divulgar que uma jovem atriz teria dado à luz depois de ter escondido a gravidez e, em seguida, entregado o recém-nascido para adoção legal.

Notem que não havia qualquer ilegalidade em questão nos dois casos, o problema era inteiramente moral, com rebarbas para o âmbito legal. O que unia as duas situações não era simplesmente o aborto, uma vez que no segundo caso a jovem mulher levou a gravidez até o final. No entanto, na discussão pública, uma história acabou emendando na outra porque todos pressentiram que havia certamente alguma coisa em comum entre elas capaz de mobilizar intensamente liberais e conservadores e suas visões de mundo.

O que seria isso?

Em primeiro lugar, a tática de militância conservadora por meio de constrangimento moral. A menina de 11 anos só conseguiu que se respeitasse o seu direito ao aborto depois que a sessão vexaminosa de constrangimento exercido pela juíza sobre ela foi publicada e a opinião pública e as autoridades reagiram. A atriz de 21 anos foi constrangida a vir a público e contar para todo mundo as circunstâncias íntimas da sua gravidez depois de ter sido retratada como leviana, irresponsável e culpada por um jornalista de fofoca de celebridades e por uma moralista de YouTube, bolsonarista até a medula.

Notem, além disso, que em ambas as situações, a geração se deu por estupro. Nesses casos, estupra-se mais uma vez a vítima. A intimidade de duas meninas violentadas foi violada. Insultos e julgamentos morais foram lançados no mercado público, naquele padrão asqueroso de dupla e até tripla violação de mulheres, de que o Brasil é particularmente pródigo. Não basta a dor do estupro. É preciso acrescentar a vergonha pela sua divulgação, a humilhação proporcionada pelos moralistas, a brutalidade de ter o fato e até mesmo os nomes registrados para sempre nos arquivos digitais.

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Há legitimidade democrática no conservadorismo moral?

 

O conservadorismo não é uma posição por si só antidemocrática, é bom que se diga. Assim como direita e esquerda em políticas econômicas são duas posições legítimas em regimes democráticos, conservadores e liberais (ou progressistas, como prefere a esquerda) são perfeitamente compatíveis com a democracia moderna. Mas se todo Estado democrático necessariamente tem direita e esquerda, de um lado, e conservadores e liberais, de outro, nem toda direita, nem toda esquerda, nem todos os conservadores são democratas. Há ditaduras de esquerda e de direita, como o sabemos. E há conservadores cujas atitudes e comportamentos estão fora do alcance da democracia.

Assim, a posição conservadora sobre aborto, direitos reprodutivos e comportamento sexual há de caber numa democracia liberal, sim, mas desde que se reconheça que: a) o contrato social aqui é estabelecido a partir da Lei e não da fé ou das Escrituras; b) a preferência moral de um grupo não lhe dá o direito de abater a liberdade de outras pessoas viverem as suas vidas como bem lhes aprouver; c) a tolerância e o pluralismo, inclusive quanto a estilo de vida e princípios, são valores intrínsecos à democracia; d) cada princípio, crença, preferência que pretenda valer para toda a sociedade pode ser alvo de discussão pública baseada numa troca leal de razões, excluídos o dogma, a força bruta e qualquer recurso não argumentativo.

Isso significa que não se pode conceder aos conservadores o direito de arbitrar sobre a vida alheia com base em dogmas religiosos. Nem o direito de suprimir direitos positivados na Lei em nome de preferências morais. Tampouco, enfim, o direito de constranger e humilhar quem orienta a própria vida e os próprios comportamentos em bases radicalmente diferentes do conservadorismo, seja ele de matriz religiosa ou não.

Acontece que os conservadores, como se sabe, têm um problema com o sexo. Os religiosos de matriz cristã, ainda mais. A sociedade evolui, as expressões deixam ser usadas, mas o fato é que os conservadores associam sexo e pecado. Dão um desconto para intercursos genitais com fins reprodutivos porque os outros meios de reprodução não lhes parecem naturais, mas só.

Por isso têm tanta dificuldade com a homossexualidade, pois aí há o lado considerado pecaminoso do sexo, voltado para o prazer e o afeto, mas não o lado aceitável, reprodutivo.  Como tudo que é prazer carnal, o sexo precisa ser punido e desencorajado se usado para qualquer outro fim. Para isso, ele precisa vir com consequências, uma espécie de pedágio obrigatório para expiar o pecado do gozo genital: se engravida, tem que gerar; se gerar, tem que criar. A criança que engravidou, ainda que criança e estuprada, tem que ter uma gestação completa, gritaram. Sem a consequência, imaginam, todas as meninas bem podem começar a ter relações sexuais. A jovem mulher que engravidou, ainda que com base em violência, precisa não só gerar como criar o filho, gritaram outros, assim elas aprendem a “fechar as pernas”, como sugeriu uma vereadora bolsonarista do interior do Paraná.

Claro, dadas as premissas, o conservadorismo sexual é particularmente punitivo para as mulheres, sobrecarregando-as com mais uma cruz nas costas, não bastassem todas as outras que lhes impõem sociedades ainda tão desiguais. Mas o conservadorismo costuma ser punitivo em geral: é pela compunção, penitência, autoflagelação e privação voluntária do que é prazeroso para a carne que o espírito se eleva. E, uma vez que eu me privo, os outros também precisam se privar; ninguém se sacrifica sozinho, todo mundo tem que se sacrificar.

Por essa razão é que o conservador é um moralista, um vigilante e controlador da moral alheia, sempre na convicção de que não se privar é errado e o errado é da conta de todo mundo.

Nada há de democrático nisso. O conservador sexual é um autoritário vigilante da vida alheia, um devotado aplicador de punições, mesmo que a punição consista em delatar e expor a vida dos outros, já crivada de julgamentos. Ele quer que o seu estilo de vida se imponha a todos. Ele deplora a liberdade alheia, lamenta a dissidência e refuta dogmaticamente que os seus próprios princípios e valores sejam submetidos ao escrutínio dos que não compartilham a sua fé. É autoritário, dogmático, incapaz de tolerar divergências e de aceitar o pluralismo.

 

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Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes

 

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