Os sentidos dos sentimentos contra Neymar: incômodos e preconceitos

Os sentidos dos sentimentos contra Neymar: incômodos e preconceitos
Neymar em jogo na Copa do Mundo 2018 (Foto Lucas Figueiredo / CBF)

 

Uma das maiores polêmicas que vem ganhando as redes sociais, a mídia e mesmo as conversas entre torcedores brasileiros é quanto ao jogador Neymar. Tido como o principal craque da seleção brasileira, o jogador do Paris Saint-Germain (PSG) tem sido considerado um simulador de faltas, cai-cai e mascarado. Além disso, Neymar já declarou não se considerar negro, apoiou a candidatura de Aécio Neves à presidência nas eleições de 2014, foi alvo de acusações de sonegação fiscal e teve uma saída polêmica do Santos F.C., seu clube original – o que levou dirigentes da equipe brasileira a entrarem com uma ação contra o pai-empresário do jogador.

Neste cabedal de críticas, mistura-se comportamentos políticos condenáveis, descompromisso com a luta contra o racismo, posturas antiéticas (quanto ao caso de sonegação fiscal e também a polêmica saída do Santos e ida ao Barcelona) com uma expectativa de que tudo isto seria mitigado se ele tivesse uma postura de “herói” em campo, demonstrando amor a camisa, entre outras coisas. Como isto não acontece, a frustração com seu comportamento em campo soma-se às críticas aos seus comportamentos pessoais. E se coloca como contraponto à figura de Neymar o craque português Cristiano Ronaldo (CR7).

O que chama atenção em tudo isto é que esta pretensa “superioridade de caráter” do CR7 esconde dados objetivos que desmentem muitas das opiniões sobre o brasileiro. Segundo dados do FootStats, na primeira fase da Copa do Mundo, Neymar finalizou 16 vezes a gol, superando CR7 (Portugal) e Tony Kroos (Alemanha), com 15. No quesito finalizações certas, em direção ao gol, Neymar lidera com oito, contra sete de Cristiano Ronaldo e seis do francês Grizmann. Neymar também lidera no item posse de bola, com 9m48s; contra 9m38s do espanhol Isco e 9m28 de Tony Kross. Para quem acha que o brasileiro é “mascarado”, outro dado que desmente: Neymar lidera nos dribles certos, com 10; contra 5 de Isco e Son (Coreia do Sul). E, finalmente, ele foi o jogador que mais recebeu faltas: 17 (o que dá uma impressionante média de quase seis por jogo); contra 5 de Isco e Son. De quinze quesitos medidos pelo FootStats, o brasileiro lidera em cinco.

E sobre as simulações, estudo do Stop Diving, publicado nesta revista CULT, ainda no decorrer da primeira fase da Copa do Mundo, mostrou que o jogador que mais simulou faltas foi o nigeriano Victor Moses, com sete tentativas de “cavar” faltas. Depois, vem o CR7, com cinco e na sequencia, Henry Kane, da Inglaterra, com quatro. Neymar aparecia com três naquele estudo.

O português Cristiano Ronaldo é o atleta mais bem pago do futebol atualmente. Segundo estudo do Instituto Português de Administração e Marketing, a “marca” CR7 vale, hoje, em torno de 102 milhões de euros. Este é um fenômeno típico da realidade do esporte profissional dos dias de hoje: os atletas não são pessoas, são personagens que viram máquinas para gerar dinheiro. As suas atitudes, falas, comportamentos, dentro e fora do campo são cuidadosamente esquadrinhadas para gerar faturamentos na milionária indústria global de marketing que sustenta o futebol. Gabriel Jesus, quando marca gol, comemora fazendo um sinal de que está telefonando, referencia a um dos seus patrocinadores, a Vivo. O centroavante Ronaldo comemorava com o sinal da “número 1”, da Brahma.

E o próprio Neymar aproveitou de uma situação controversa quando seu colega, Daniel Alves, ambos ainda no Barcelona, foi vítima de um ato racista da torcida espanhola que lhe atirou uma banana. Dani Alves, num ato de reflexo, pegou a banana e comeu. No dia seguinte, Neymar postou nas redes sociais uma imagem comendo uma banana e o slogan Somos todos macacos – esta campanha recebeu críticas violentas do movimento negro, mas foi tida como um dos maiores sucessos de propaganda viral.

Enfim, todos estes atletas profissionais estão imersos em uma poderosa indústria de marketing, razão pela qual é difícil buscar uma “pureza de comportamento” ou uma “atitude desprendida” de algum deles, embora eventualmente isto possa acontecer.

Se os dados dos jogos desmentem muitas das acusações feitas ao jogador brasileiro e se o panorama da indústria do marketing no futebol praticamente equivale todos eles, qual é a origem destas cobranças a Neymar? Simples: a diferença que existe entre ele e CR7 é a cor da pele. Isto é, a presença de um jogador negro neste mega-esquema global que movimenta dinheiro pela exposição da visibilidade e fama incomoda e se cobra posturas e comportamentos dele que não se cobra de outros.

E isto independe da postura política de Neymar. Independe de ele se considerar negro ou não, de ter uma visão adequada do racismo ou não. O racismo é praticado pelo outro e não perdoa que pessoas de pele mais escura frequentem circuitos de riqueza construída pela sua visibilidade (grifo isto porque um dos maiores incômodos do racismo é quando se rompe a visibilidade negra), ainda que tais pessoas não tenham a consciência do seu pertencimento racial.

Pode-se fazer um paralelo do caso Neymar com o de outra celebridade negra que morreu no ostracismo: o músico Wilson Simonal. Os adjetivos interpostos a Simonal eram muito parecidos: arrogante, nojento, prepotente, queria mostrar sempre sua riqueza… E, como Neymar, também recebeu o carimbo ideológico de conservador, quando foi acusado de ser dedo-duro da ditadura militar. E a percepção do racismo em Simonal só foi sentida quando ele recebeu este duro golpe que acabou com sua carreira.

Ainda que Simonal tenha feito a belíssima música Para Martin Luther King, a fama o fazia sentir-se amigo de Carlos Imperial e a tal “pilantragem”, de se achar competente o suficiente para ser convocado para a seleção brasileira de futebol de 1970 e fazer questão de mostrar que tinha duas Mercedes Benz importadas. E não ver nenhum problema em ameaçar o seu contador dizendo que era “amigo dos caras do regime” (o que levou a toda acusação de ser dedo-duro da ditadura).

Simonal não tinha posicionamento político progressista em uma conjuntura de brutal repressão. Mas Nelson Rodrigues também não tinha e boa parte da intelectualidade de esquerda “perdoa” isto exaltando o seu “talento literário”. Questão de cor de pele novamente.

Enfim, o que se está colocando aqui não é uma defesa de Neymar, mas uma provocação a nossos corações e mentes. Será que determinadas cobranças não são produtos de incômodos de ver uma pessoa ter comportamentos que muitos outros, com rostinho mais claro, têm perdoados? Como se fosse um intruso que se permite entrar na festa, desde que fique quieto e não se meta a ser a figura principal. O racismo está em muitas atitudes, mesmo aquelas que não são explicitamente preconceituosas. Enfrentar o racismo exige pensar isto.

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