Negacionalismo
(Foto: Agência Brasil)
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“Em que creem os que não creem?” A questão tratada por Umberto Eco e Carlo Maria Martini no livro de mesmo título nunca foi tão atual. Traduzindo a resposta em linguagem psicanalítica, não há descrença absoluta, ou ateísmo, no inconsciente. Os que não creem de fato creem em outra coisa, ainda que seja incrível para nós. O negacionismo é, portanto, movido por crenças muitas vezes desconhecidas por seus próprios atores. Negar o holocausto judaico promovido pelos nazistas é expressão de antissemitismo, assim como negar o preconceito contra pretos no Brasil é expressão de racismo, ainda que inconscientes.
E o terraplanismo, que ganhou celebridade recentemente, séculos depois de Pitágoras? Não se trata, evidentemente, apenas de negar o globo terrestre, mas de recusar todo o conhecimento associado ao progresso científico alcançado desde a modernidade, bem como o “progressismo” social e político dele decorrente. Há certezas de fundo no negacionismo da esfericidade da Terra. Fazendo avançar a metáfora, o terraplanismo tem como correspondente o achatamento do pensamento, que se torna plano, em nome de verdades instituídas acerca do certo e do errado: acredita-se piamente no que é o homem, a mulher e em qual devem ser seus papéis na família e na sociedade. Acredita-se que o branco colonizador é superior ao preto, ao oriental ou ao índio colonizados. Acredita-se que o cristão é superior ao adepto de religiões politeístas, ao muçulmano e, mesmo, ao judeu que se quer converter.
Na Terra redonda não se cai, independentemente do ponto em que se está, “acima ou abaixo”, uma vez que a gravidade se dirige ao seu centro. Admite-se que há perspectivas distintas, dependendo da posição que cada um ocupa no globo. Na Terra plana, se não se está por cima, não há o que nos segure. Haja medo! Nessa concepção de mundo vigora a paranoia, e a incerteza provoca angústias intoleráveis. A resposta usual é a violência dirigida àquele que pensa e se porta diferentemente na vida. Sempre em nome da “verdade”. Os negacionismos que vimos assistindo no país desde 2019, incrementados com a pandemia, sustentam, portanto, um movimento social, político e religioso que podemos nomear de negacionalismo.
O negacionalismo pretende colocar o mundo que conhecemos de ponta-cabeça, desestabilizando nossas crenças e valores, produzindo a vertigem da queda, o pavor de que tudo pode ruir a qualquer momento. Os avanços da medicina, os direitos humanos mais básicos, a lisura das eleições e a posse do novo presidente eleito, tudo é submetido a teorias conspiratórias em nome das certezas negacionalistas.
A crença que move nossos compatriotas ditos “bolsonaristas” é a de que “está tudo errado” em nossa visão de mundo e no estilo de vida que adotamos. Os valores morais foram corrompidos, a política está podre e o comunismo viceja sorrateiro no solo da corrupção, ameaçando a tradição, a família e a propriedade. Assim, a violência e a destruição dos símbolos que sustentam nossa democracia pretendem instaurar o caos e o medo entre os cidadãos ingênuos ou de má fé que não pensam como os negacionalistas, bem como a fúria reacionária dos “verdadeiros patriotas” que, por contágio, poderá enfim fomentar o golpe tão esperado. E os cidadãos considerados de bem assumirão – por meio das armas, evidentemente – o leme que dirige os rumos da nação à qual só eles têm direito, os negacionalistas.
Não é difícil perceber que, sem a reação imediata do Estado Democrático de Direito, caminharemos rumo à guerra civil, possibilidade sempre presente em um país dividido pela cultura do ódio.
Só há uma vacina para a proteção da nossa jovem democracia: a coragem de agir rapidamente, com o rigor da lei, de modo a inibir a emergência de uma pátria negacionalista.
Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.