Porque eu era o fim do mundo ao vivo: “Não alimenta a escritora”, de Telma Scherer, e outros lançamentos

Porque eu era o fim do mundo ao vivo: “Não alimenta a escritora”, de Telma Scherer, e outros lançamentos

 

Em 2010, durante a tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, instalada anualmente na Praça da Alfândega, Telma Scherer realizou uma performance intitulada Não alimente o escritor. Em meio ao usual comércio das grandes editoras e dos best sellers, à parte da programação oficial do evento, a proposição da artista partiu do enfrentamento. Acorrentada a uma casinha de cachorro azul, sobre um cobertor vermelho, entre inúmeras contas a pagar em seu nome e muitos livros, Telma Scherer se apresentava como um corpo estranho, digamos, um corpo não domesticável.

O irônico título da ação (legível numa placa), os elementos em jogo na cena, o contexto – tudo apontava para a complexa relação entre arte, mercado, público e instituições. E, nessa relação, o que Não alimente o escritor salientava, eu diria, era a desafiadora condição daquelas e daqueles que não se enquadram facilmente nos formatos dos enormes eventos comerciais, nos circuitos das mega-exposições ou nos padrões exigidos pelos editais de fomento: em suma, salientava os incontáveis artistas e escritores contemporâneos que fazem da arte uma forma de vida absolutamente indócil, transitando entre as oportunidades críticas e os variados riscos que as margens do espetáculo podem oferecer.

Essa linha tênue onde coincidem a liberdade e a captura fez-se evidente na performance em questão. Ao que parece, o efeito produzido foi mesmo contundente. Algumas pessoas do público se mostraram profundamente incomodadas com a cena. A polícia foi chamada. E, em pouco tempo, sob a luz dos refletores da feira, sob olhares atônitos e câmeras de jornalistas, a artista foi detida, sendo escoltada por dez policiais e duas motos até a delegacia, “para averiguação”.

A violência que estrutura nossa sociedade – isto é, a violência sobre a qual parecem repousar os nossos vínculos materiais e imateriais – foi assim terrivelmente reencenada. E não me refiro apenas à inaceitável violência policial. Sobre o corpo de Telma Scherer – corpo duplo, por assim dizer: biológico, antes de tudo, mas também simbólico – fez-se novamente a inscrição de um poder autoritário e misógino, estruturante da nossa sociedade democrática. Confrontado com o aspecto disruptivo de um gesto contingente, que arma provisoriamente um limiar entre arte e vida – no qual o próprio corpo dá corpo à obra –, esse poder mais uma vez impôs o limite que opera a discriminação dos espaços, dos corpos, dos fazeres e dos sentidos atribuídos a esses fazeres. Sua racionalidade grosseira afirma mais ou menos o seguinte: não parece arte, não está no lugar da arte, logo não deve ser arte; tampouco parece uma vida normal, não se comporta como uma vida normal, logo não deve ser normal; então melhor conter, “averiguar”, claro, está “atrapalhando a feira”, há risco de perturbação da ordem etc.

Qual a duração de um episódio como esse? Teria ele se encerrado assim que a artista foi liberada? Essa liberação se confunde com o retorno ao que entendemos ser a liberdade? Ou ainda: como lidar com a memória da proposição da performance, seguida da violência sofrida? Tais perguntas movem a leitura de Não alimente a escritora (Urutau, 2021), livro-poema de fôlego que Telma Scherer escreve e publica uma década depois, repondo o acontecimento. Seus primeiros versos:

No dia em que me prenderam
eu não tinha um puto,
mas não importava.
Apenas a poesia
que eu falava
entre goles
de bolhas de sabão
é que me prendia à praça,
ao público,
ao pobre artista que, comigo,
brigava contra a polícia.

E algumas páginas depois:

Faz dez anos
que eu fui presa e
o dia em que me prenderam
não acabou nunca.

No poema, essa reposição parece ser uma forma de dar ressonância à proposição da performance. Mas é sobretudo, a meu ver, uma forma de modular uma espécie de elaboração, com a qual o sentido do acontecimento originário é trabalhado e diferido. O episódio pretérito, em princípio origem do poema, passa a ser também o efeito de um novo investimento linguístico e afetivo que é feito a posteriori: “Sem escrevê-las/ não saberia/ como digerir/ essas notícias”.

Em outras palavras: sabemos que, seja no registro mais dedicado das nossas memórias, seja na busca mais atenta da verdade histórica, há sempre um resto que não cessa de não se inscrever, algo que faz o acontecimento não acabar nunca. Se há potência numa emergência estética é porque nela reside essa duração avessa à linearidade cronológica e que nenhum ato é capaz de encerrar. Daí que inscrever essa impossibilidade de inscrição última venha a ser a única forma eticamente possível de seguir escrevendo; talvez o único gesto capaz de sustentar realmente uma poética criadora de subjetividade, isto é, uma poética da pluralidade, da diferença.

Como afirma Tereza Virginia de Almeida no prefácio, o poema “é em si uma nova ação”. De fato, o livro é um outro acontecimento, ele mesmo produtor de efeitos e sentidos, de outro começo, o que fica bem evidente já na mudança do título, agora trazido para o gênero feminino. E a longa sequência dos versos vai, cada vez mais, reafirmar essa incontornável dinâmica entre repetição e diferença, que dá abertura à lenta construção de um sujeito feminino, de uma voz que toma para si uma exigência: não a de vir-a-ser o que sempre fora, talvez, mas sim a exigência de inventar-se a si mesma como quem inventa o impossível.

Nesse ponto, como vemos, conjuga-se o horizonte político da escrita de Telma Scherer. “porque eu era/ O FIM DO MUNDO AO VIVO”, nos diz o poema. Esse é o lugar onde a poética mais singular alinha-se com uma linha de fuga comunitária, vale dizer, é o ponto nervoso, encarnado, no qual a subjetividade articula-se intimamente com a imaginação pública do mundo. “Sorvo,/ nas vísceras,/ essa década.” Não se trata, portanto, de conciliar, de apaziguar, de compactuar. Trata-se, ao contrário, de dar pungência a esse contato que exige alternativas para um mundo há muito abandonado pelos astros e violentado pelos homens.

Será preciso
cortar o céu
com uma faca
para que os deuses
saiam
do algoritmo?

Que algo possa ser construído a partir daí. Telma Scherer vem insistindo nesse enfrentamento, de muitas maneiras, há algum tempo. Além de escritora e artista visual (pintora e performer), é professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina. Suas produções incluem o romance Lugares ogros (Editora Caiaponte), o instigante híbrido intitulado Entre o vento e o peso da página (Medusa), além de cinco livros de poesia, entre eles Rumor da casa (7Letras), Depois da água (Nave) e Squirt (Terra Redonda), este último tendo sido semifinalista do Prêmio Oceanos. Que a fatura dessa poética em curso alimente uma performance coletiva, sem a qual tendemos a nos enfraquecer. A aposta, aqui, é clara:

Na fumaça das memórias,
me vi viva, preenchida
de turbilhão.
Escrevo.

Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


por Redação

Jumpei Niki, um professor escolar e colecionador de insetos, viaja sozinho a um distante vilarejo localizado no meio de dunas de areia. Ali, fica até o anoitecer entretido na captura de insetos raros. Sem transporte para sua casa àquela hora, hospeda-se na casa de uma viúva da vila. Os aldeões comportam-se de maneira estranha, e logo o motivo é revelado: Jumpei fora aprisionado lá, designado como novo homem da viúva para lhe ajudar a, diariamente, remover a areia que encobre tudo. Dois anos após a publicação do livro, sua história foi transposta para o cinema por Hiroshi Teshigahara, em 1964, quando gerou polêmica com suas cenas eróticas.

Ensaio no qual o filósofo francês reflete sobre as crônicas de Clarice Lispector, publicadas na França em 2019. Na análise de Didi-Huberman, seus textos constituem “um pensamento das emoções”: “o qual se inscreve de maneira vertical, rompendo com a planura – a monotonia, a horizontalidade – da experiência cotidiana”, nas palavras de Veronica Stigger, que assina a orelha. Distante da escrita confessional, o filósofo nota “um saber não convencional – nem psicologia, nem sociologia – fundado sobre uma prática da escrita como uma forma de mover o pensamento”. O ensaio originou-se de uma conferência na Universidade de Zurique, em um ciclo dedicado a escritores brasileiros organizado pelo professor Eduardo Jorge de Oliveira. Também faz parte desse ciclo um ensaio de Jacques Rancière dedicado à escrita de João Guimarães Rosa.

Primeiro livro do escritor camaronês Max Lobe publicado no Brasil, A trindade bantu centra-se na história de um casal homossexual que vive em uma Suíça eivada pela intolerância e pela xenofobia. Mwána, jovem bantu que vive em Genebra, apaixona-se por Ruedi, um suíço-alemão, e divide com ele as angústias do futuro, o medo da miséria à procura de um emprego e as cisões entre sua cultura natal e a europeia. Nas palavras de Prisca Agustoni, “a riqueza da oralidade da cultura bantu é protagonista também deste romance que é um verdadeiro canto à vida”. O livro foi vencedor do Salerno Book of Europe Award e, em certa medida, reflete as experiências do autor, que vive na Suíça desde os 18 anos.

No novo livro de poesia do escritor amazonense Eleazar Carrias, imagens e questões cotidianas aliam-se à força criadora do mito e da poesia. “A poesia será uma língua de fogo ou não será”, evoca Micheliny Verunschk na orelha do livro, remontando à Bíblia. Nessa chave podem ser lidos muitos poemas, atravessados pela palavra enquanto ato divino e criador: “O problema está em nomear as coisas. / Um nome pode desencadear tristes destinos. / Tanto quanto possível, / evita essa tarefa ingrata.”. Ainda nas palavras de Verunschk, a “máquina” a que alude o título pode ser vista não como um dispositivo artificial, mas sim um organismo vivo, que move percepções, pensamentos e palavras – como que percorridos pela língua de fogo. A máquina, ainda, remete nas entrelinhas ao referencial poético de seu autor: “A lucidez e a claridade que amalgamaram a poesia de João Cabral de Melo Neto e a arquitetura da máquina de comover de Le Corbusier”, escreve Verunschk.


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