My Brilliant Friend: as bonecas e o dinheiro
Cena de 'My Brilliant Friend', baseada em obra de Elena Ferrante (Foto: Divulgação)
Nos anos 1950, duas meninas vivem em um bairro operário na periferia de Nápoles. Tudo que as cerca, dentro e fora de casa, é hostil: a violência é a regra das relações humanas; a precariedade econômica determina os destinos, principalmente porque a Camorra, máfia da região, está infiltrada no tecido social, borrando os limites entre legalidade e ilegalidade. Um passo em falso é o bastante para cair em um caminho sem volta.
As meninas, Elena Greco e Rafaella Cerullo, estudam juntas na pequena escola do bairro e vão se aproximando pouco a pouco. A rebeldia de Cerullo, a quem Elena passa a chamar de Lila, encanta a amiga desde o início. Elena, que sempre foi elogiada pela disciplina, vê em Lila uma força indomável, capaz de enfrentar tudo e todos. Pequenina, magra, sempre suja e desgrenhada, Lila é mais levada que os meninos. Também é a aluna mais brilhante da classe: aprende a ler e a escrever precocemente e é igualmente habilidosa com números e desenhos.
O fascínio que Lila exerce sobre Elena a acompanha por toda a vida. A história dessa amizade permeada de contradições é narrada com riqueza de detalhes a partir da perspectiva de Elena. Na série, como no livro, temos um prólogo onde a narradora (Elisabetta De Palo), com quase setenta anos, recebe um telefonema de Rino, filho da Lila, desesperado pelo desaparecimento da mãe. A escrita do romance que lemos, e agora da série que vemos, é a resposta de Elena à ausência de Lila, que há muito tem falado sobre o desejo de desaparecer sem deixar vestígios, tema que se adensa nos próximos volumes da tetralogia.
As personagens de Elena Ferrante ocupam cerca de mil e setecentas páginas, divididas em quatro volumes, que foram publicados separadamente entre 2011 e 2014. Desde então, Elena e Lila ganharam o imaginário popular e agora temos a série My Brilliant Friend, que estreou no Brasil no último domingo (25), na HBO. Em um arranjo diferente do habitual, a série está sendo exibida aos domingos e às segundas-feiras, às 22h, com episódios inéditos de uma hora de duração.
Ferrante assina o roteiro ao lado do diretor, Saverio Costanzo, e de Laura Paolucci e Francesco Piccolo. O napolitano Paolo Sorretino, cineasta responsável pelos ótimos Juventude (2015) e A grande beleza (premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014), é produtor executivo da série.
A HBO preferiu usar a versão do título em inglês, provavelmente seguindo o modelo de outras séries. A escolha soa especialmente descabida, pois os livros foram publicados no Brasil e têm uma trajetória editorial bem sucedida, então poderíamos ter ao menos o título equivalente em português (A amiga genial). A decisão destoa ainda mais quando pensamos que essa é a primeira produção da HBO que não foi filmada em inglês — felizmente, a série está em italiano e em dialeto napolitano. Mas, a julgar pelos dois primeiros episódios, os acertos são maiores do que os erros.
Na primeira temporada, são oito episódios que correspondem ao primeiro livro e tratam da infância e da adolescência das protagonistas. Ao contar a história da vida das pessoas que vivem no bairro (que teria sido inspirado no rione Luzzatti), Elena Ferrante também faz um rico panorama histórico de Nápoles, retratando de maneira meticulosa as tensões da época.
Um dos maiores desafios da adaptação é transpor a subjetividade do relato em primeira pessoa para a tela. Outro desafio é marcar a distância entre o tempo do enunciado e o tempo da enunciação. Algumas cenas recorrem à sobreposição do texto em voice over, recurso muito usado pelo cinema, bastante conservador.
É importante lembrar que a história que acompanhamos não corresponde à representação direta da realidade, pois temos ao menos uma instância de mediação. Vemos Lila através dos olhos de Elena, que tinge a amiga com cores míticas: Lila é percebida como parte de uma linhagem de “mulheres perigosas” que encontramos nos mitos gregos clássicos, e integra um grupo de personagens literárias fortes e ambíguas, como Capitu em Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Diadorim de Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para citar dois exemplos brasileiros.
Ludovica Nasti, atriz que interpreta Lila criança, confere à personagem tanto concretude quanto intangibilidade. Sua atuação é feroz, com olhares, gestos e entonações afirmativos. Elisa del Genio também impressiona como Elena, é muito talentosa. Depois de assistir à série, fica difícil imaginar outros rostos e outras vozes para as personagens.
Alguns dos momentos mais emblemáticos do livro foram transpostos quase inalterados. Em outros casos, encontramos mudanças, algumas meramente de condensação, outras mais significativas (por exemplo: na série, ao contrário do livro, Lila é chamada assim por todas as personagens, não apenas por Elena). Mas, de maneira geral, os roteiros estão bem próximos do texto original.
Em “As Bonecas” (“Le Bambole”), primeiro episódio da série, as meninas são assombradas por Dom Achille. Para elas, o camorrista é como o ogro das fábulas. Quem leu a tetralogia sabe que a troca das bonecas, Tina e Nu, é o evento embrionário dessa longa e complicada amizade: quando Lila atira a boneca de Elena pelas grades do porão, a amiga, desconcertada, faz o mesmo com a boneca de Lila: “O que você fizer, eu também faço”, diz.
O porão é um lugar bastante simbólico: representa o desconhecido, espaço que concentra os piores temores da narradora. Imaginar sua boneca tão querida exposta aos perigos do subsolo é um sofrimento insuportável para Elena. Por isso, toma coragem para descer até lá, junto com Lila, na tentativa de recuperar Tina.
As consequências desse evento acompanham Elena literalmente até a última página dos livros. Provavelmente, o mesmo acontecerá na série. Mas isso ficará para uma quarta temporada.
No episódio, um breve olhar de Lila sugere que a menina chegou a ver as bonecas caídas na penumbra, mas preferiu dizer que não estavam lá, argumentando que foram levadas por Dom Achille. Mas vale lembrar que o que vemos é o que Elena nos conta e, portanto, diz respeito a suas hipóteses e interpretações dos acontecimentos.
O segundo episódio, “O Dinheiro” (“I Soldi”), começa com as meninas batendo na porta de Dom Achille. É nessa ocasião que Lila dá a mão a Elena pela primeira vez, gesto que mudará tudo entre elas, para sempre — é o que escreve a narradora no livro. Lila então confronta o camorrista e o acusa pelo sumiço das bonecas. Ele nega, mas dá às garotas um pouco de dinheiro para que comprem outras.
As meninas saem correndo, guardam o dinheiro em um lugar afastado (em uma cena muito bonita, mais longa e detalhada do que a do livro) e, mais tarde, recuperam o valor para comprar um romance: Mulherzinhas (1868), de Louisa May Alcott. A história de Alcott, que vinha de uma família pobre e enriqueceu ao escrevê-lo, encanta Lila tanto quanto a história de Jo e de suas irmãs, protagonistas do romance. Lila está obstinada a fazer o mesmo: enxerga na literatura o passaporte para sair do bairro e da condição precária em que vivem.
Na tetralogia, Mulherzinhas é apenas mencionado, embora mais de uma vez. Na série, o livro ganha mais espaço: as meninas o leem juntas, ao longo das estações, e os trechos selecionados pelo roteiro reforçam a intertextualidade.
“— É horrível ser pobre! —suspirou Meg, olhando para o vestido velho que usava.
— Não acho justo que algumas meninas tenham tantas coisas bonitas, e outras não tenham nada – acrescentou a pequena Amy, fungando, revoltada.”
As cenas de leitura são algumas das mais bonitas do episódio, que reúne outros momentos importantes, como a epopeia frustrada rumo ao mar (a cena com as ovelhas é inteiramente nova, mas não soa como um acréscimo, está perfeitamente integrada); a escrita de A fada azul, livro de Lila que impressiona Elena; e a “queda”, tanto concreta quanto simbólica, de Lila, que termina com um braço quebrado e impedida de continuar os estudos.
A partir do próximo episódio, as meninas serão substituídas por Margherita Mazzucco e Gaia Girace, que também estão ótimas como Elena e Lila, respectivamente, na adolescência. Todas as atrizes são estreantes e foram selecionadas em testes pelos quais passaram milhares de pessoas em Nápoles. O mesmo vale para boa parte do elenco.
My Brilliant Friend merecia uma análise detida, cena à cena, porque consegue deslocar e condensar de maneira quase sempre primorosa a história que acompanhamos nas páginas. Talvez a série não cause a mesma impressão em quem não leu os livros e não conhece os pormenores que tornam a história dessa amizade tão complexa, mas sem dúvida é um bonito panorama da jornada de força que é a tetralogia de Ferrante.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Escreve sobre literatura, cinema e psicanálise.
(4) Comentários
Estou amando a série. Li os livros no ano passado. As atrizes captaram a alma das personagens (Lenu e Lila).
Respondendo à dúvida levantada em sua resenha, eu diria que a série é tão primorosa que, ainda que eu não tenha lido a obra, estou encantada e absolutamente envolvida com as personagens Lenu e Lila. Impressionou-me as atuações dessas meninas. Eu não sabia, mas suspeitava que a série trazia o selo de qualidade Sorrentino, a meu ver um dos maiores nomes do cinema atual (escrevendo, produzindo ou dirigindo, ele é simplesmente genial em tudo o que faz – vide a série The Young Pope, por exemplo).
Parabéns pela resenha, Fabiane, você conseguiu captar tudo aquilo que vivenciamos a cada episódio dessa maravilhosa produção da HBO.
Excelente análise!
Ótima reflexão!