O que é vandalismo?
Museu Nacional: incêndio destruiu 90% do acervo de instituição de 200 anos (Foto Tania Rego/Agência Brasil)
Por Charles Feitosa
Da minha janela em Vila Isabel, para além de um mar bege de prédios, costumo vislumbrar à esquerda o prédio cinza da UERJ, onde iniciei meus estudos de filosofia; à direita, a estrutura oval do Maracanã, de onde ecoam às vezes gritos de prazer e dor, e mais ao fundo um vazio luminoso, que eu sei que representa as árvores do Parque da Quinta da Boa Vista. Nesse último domingo, dia 02.09, eu vi também uma coluna de fumaça cinzenta e sinistra, em torno da qual voavam helicópteros. Como tantos outros, também meu rosto empalideceu de tristeza e revolta. Além das 20 milhões de peças singulares do acervo, que nenhum dinheiro do mundo será capaz de substituir ou restaurar, queimavam também no Museu Nacional algumas das minhas melhores memórias de infância. Tanto as minhas próprias, das visitas e excursões da escola aos gramados de São Cristovão, como as dos meus filhos pequenos, com quem ainda tive a chance de poder repassar a experiencia sem preço de percorrer os corredores do velho palácio, mas que agora estarão para sempre privados de voltar ao museu mais simpático, acolhedor e generoso com o público infantil no Brasil.
Não era uma metáfora, era literal, real, palpável, dava para ver, escutar e sentir o cheiro de uma parte do passado e também do futuro do Brasil se decompondo no calor das chamas. Por uma estranha coincidência, a última vez que tinha visto tantos helicópteros rondando a área foi justamente durante a Copa do Mundo, especialmente no jogo final, quando o Maracanã sediou a festa do esporte e a cidade viu diversas manifestações contra algo que na época podia parecer absurdo, mas que nesse domingo pareceu ter sido sempre o óbvio: mais de um bilhão de reais foi gasto na reforma do estádio, ao passo que o museu mais importante do país, o quinto maior do mundo, estava entregue à míngua, junto com a educação (lembrando que a UERJ também sofreu com os cortes progressivos de orçamento), a saúde, a ciência, as artes e a cultura da cidade e do país.
Naquela época a palavra da moda, usada pela mídia e pelos políticos para designar os manifestantes, era “vândalos”. Quando se fala de vandalismo vêm à mente imediatamente a figura de um black block atirando um tijolo contra a vidraça de um banco. Circula pelas redes sociais um meme onde pode se ver a sombra de um meteoro gigante se aproximando da terra, ao mesmo tempo em que ecoam vozes trêmulas gritando: “E agora, as janelas?!”. Ironicamente o meteoro de Bendegó foi um dos poucos itens que resistiu ao incêndio. E eu me pergunto, mas e agora, os museus, as universidades, os hospitais?
Lembro-me que Nietzsche diferenciava entre várias formas de apetite pelo nada. A principal nuance refere-se ao niilismo ativo e ao niilismo passivo. O niilismo ativo talvez pudesse ser representado pela figura de um neonazista, destruindo tudo o que encontrarem na rua e ameaçando os transeuntes, principalmente estrangeiros, mulheres, gays ou moradores de rua; enquanto que o niilismo passivo talvez pudesse ser figurado pela atitude de indiferença dos vizinhos, observando a cena, como se não fosse com eles, enfim como “recuo e decadência das forças”. Ao invés da vontade de nada, um nada de vontade.
Aqui surgem as perguntas: Seria o descaso e o desmonte dos aparelhos culturais, educacionais e científicos do país uma forma institucional de niilismo passivo? Por que não se pode chamar o incêndio do Museu Nacional também de um ato de vandalismo? Existem também o vandalismo de Estado e das mídias de massa? O que é vandalismo, afinal? Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas parece-me que não restou outra saída agora a não ser enxugar as lágrimas, refletir muito e, principalmente, prosseguir.
Vila Isabel, Rio de Janeiro, Inverno de 2018.
Charles Feitosa é doutor em filosofia pela Universidade de Freiburg. i.B./ Alemanha
(1) Comentário
Grande Charles! Me comovi ao ver o noticiário e sei que você como tem uma relação estreita com a arte e a filosofia era a melhor pessoa pra falar desse ato de vandalismo. Para mim esses acontecimentos descrevem perfeitamente, como uma metáfora, o que vem ocorrendo no Brasil: Uma grade perda de identidade e de dimensão histórica. O que será de nós?