Meus pais, meu país

Meus pais, meu país

 

“Você deve escrever como se seus pais estivessem mortos”
Ian McEwan

Tratando-se de um espaço novo e de um público novo (imagino que aqui terei leitores que não conhecem meu trabalho como filósofo, tradutor e professor na Universidade), achei que seria interessante me apresentar. Mas, ao tentar fazê-lo, acabei misturando minha história com a história recente do Brasil. Talvez não pudesse ser de outro jeito. Walter Benjamin diz, em algum lugar, que, ao contar a história do Idiota, Dostoiévski estava contando a história do próprio povo russo. A minha história sempre foi para mim inseparável da história do meu país. E mesmo que no momento em que eu escrevo essas palavras eu esteja na França, muito distante do meu país, ao ter que falar de mim onde quer que eu esteja de repente esse país vem à tona e me atropela.

Nasci em 13 de outubro de 1968, em plena ditadura militar, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, em uma época em que a região era uma das mais pobres e violentas do Brasil. Dois meses após o meu nascimento, em 13 de dezembro de 1968, foi baixado, durante o governo do general Costa e Silva, o Ato Institucional nº 5, que vigorou até dezembro de 1978. Os dez primeiros anos da minha vida foram vividos sob o AI-5, momento mais duro do regime militar ao instaurar um estado de exceção que permitia punir arbitrariamente todos aqueles que se opusessem ao regime, não só com o exílio, a prisão e a tortura, mas também com a morte.

Eu não sabia exatamente o que era a ditadura militar nessa idade, mas sentia seu cheiro no ar. Era uma atmosfera pesada, carregada de medo, que sentíamos claramente, mesmo que não a compreendêssemos, como era o meu caso. Muitos anos depois, alguns filmes latino-americanos foram realizados exatamente para tentar descrever o que foi a ditadura militar vista pelos olhos de uma criança, como o argentino Kamchatka, de Marcelo Piñeyro, de 2002, e o brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, de 2006. A diferença entre a minha história e a dessas crianças é que nesses filmes as crianças retratadas eram filhos de pais que se engajaram na luta contra a ditadura. No meu caso, tratava-se exatamente do contrário: meu pai era um típico representante da sociedade brasileira que apoiava a ditadura militar. Os militares, segundo ele, tinham vindo para acabar com a baderna e nos livrar dos comunistas, o que quer que isso quisesse dizer. Afinal de contas, a ditadura só era sentida como tal por uma parcela pequena da sociedade, a mesma que hoje vai às ruas gritar “Fora Temer”. A maioria das pessoas à minha volta, em meu círculo familiar mais restrito, mas também no meio expandido da escola e dos amigos da família acreditava que os militares estavam nos protegendo dos subversivos – uma palavra que eu ouvia frequentemente na infância, com referência a certos indivíduos, sem ter clareza do que ela significava, mesmo que fosse absolutamente claro para mim que ela significava algo muito ruim, quase diabólico, algo que tornava aquele que era assim chamado um pária da sociedade.

Um subversivo, eu imaginava, era quase como um excomungado. Falta um filme sobre crianças que viveram em famílias que apoiaram o golpe, crianças que mais tarde viriam a tomar consciência do que foi a ditadura militar e o que foi o apoio que as suas famílias deram a ele. Parece que, na Alemanha de hoje, jovens acusam abertamente seus pais ou avós de terem sido coniventes com o nazismo. É numa situação similar que eu me senti quando fui me dando conta, já adolescente, dos fatos ocorridos durante o período da ditadura. A comparação parecerá excessiva a alguns, mas o estado de exceção não tem mais nem menos: quando se chega a ele, já estamos no limiar que nos entrega a uma vida que não é mais nem humana nem animal e para a qual o filósofo italiano Giorgio Agamben forjou a expressão “vida nua”.

Quando Caetano Veloso fez 50 anos, ao se pronunciar sobre o período da ditadura militar em uma série de televisão que tinha sido feita para a antiga rede Manchete em comemoração à data, ele afirmou que, por mais absurdo que achasse o que estava acontecendo no Brasil naquele momento, era claro para ele que aquilo era algo que vinha das profundezas do Brasil. Essa fala de Caetano sempre calou fundo em mim. A ditadura militar vinha de um Brasil profundo que jamais era atingido pelas tentativas, sempre superficiais se comparadas com essas profundezas, de modificação de nossa sociedade. Nem Vargas, nem Juscelino, nem muito menos Jango tinham conseguido atingir esse fundo, esse abismo do qual brotou a ditadura militar brasileira. E mesmo os 12 anos, em certo sentido revolucionários, do governo do PT permaneceram superficiais face ao abismo da nossa tradição ditatorial. E isso não porque essas figuras históricas tenham feito pouco, mas porque qualquer muito parece sempre muito pouco face à profundidade abissal de onde brota toda essa resistência a qualquer progresso social em nosso país.

Talvez por ter vivido a ditadura militar na infância, sem compreendê-la muito bem, mas sentindo-a muito bem, eu jamais acreditei que esse fosse um período ultrapassado da nossa história. Eu sempre “sentia” que a ditadura continuava lá, latente, mas podendo tornar-se patente a qualquer momento. Nem nos momentos de maior popularidade dos governos do PT, de maior otimismo em relação às mudanças em jogo em nosso país, eu parei de “sentir” esse fundo sem fundo de onde tinha brotado a nossa ditadura militar. E é em função desse sentimento sempre presente que eu não acredito, hoje, que o apoio da população brasileira ao golpe parlamentar que sucedeu em nosso país com o impeachment da presidente Dilma Rousseff seja algo diferente daquele apoio que ocorreu durante o período da ditadura militar. Há algumas diferenças, é claro. E talvez a maior delas esteja no fato de que aquele foi um golpe militar que contou com o apoio não só do legislativo e do judiciário como dos meios de comunicação de então (os mesmos, diga-se de passagem, que apoiaram o golpe atual). O golpe de hoje, ao contrário daquele de 1964, foi dado pelo próprio legislativo, pelos próprios meios de comunicação e por parte significativa do judiciário. Esses setores, que foram a retaguarda dos militares no golpe de 1964, se transformaram na vanguarda do golpe em 2016. Não tivemos mais nem sequer a ameaça de um golpe militar, que não era mais necessário, mas um golpe parlamentar-jurídico-midiático. Os militares (hoje, sobretudo a Polícia Militar), que estavam na vanguarda do golpe de 1964, se moveram para a retaguarda do atual golpe de Estado pelo qual estamos passando. O que nos faz pensar que a ditadura militar brasileira produziu meios de comunicação poderosos o suficiente para derrubar um governo democraticamente eleito. Uma imprensa, um judiciário e um legislativo que vêm daquele mesmo fundo abissal de onde nasceu a ditadura militar e que na minha infância chegava até mim como um sopro vulcânico.

Aos 3 anos de idade, me mudei com a minha família de Duque de Caxias para a Ilha do Governador, na zona norte do Rio de Janeiro, onde vivi até os 9 anos de idade. Essa mudança teve um significado claro de ascensão social. Meu pai, na época um jovem empreendedor do ramo moveleiro, melhorou muito de vida nesse período, como um típico representante do chamado “milagre econômico” da década de 1970. Tal fato até poderia ter sido uma boa razão para meu pai ter apoiado a ditadura militar, mas a verdadeira razão do seu apoio nunca esteve nessa súbita ascensão social que ele experimentou nesse período, mas em sua visão conservadora do homem e da sociedade. A prova disso é que muitas pessoas pobres tiveram uma grande ascensão social durante o governo Lula e nem por isso se tornaram de esquerda. Meu pai não apoiou o golpe militar por ter conquistado melhores condições de vida durante o regime militar. Em outras palavras, meu pai, mesmo de origem muito humilde, sempre foi um homem de direita, assim como uma parcela significativa da população mais pobre do nosso país, que se identifica, por razões que só a psicanálise de Freud nos permite entender, com os seus algozes. Já escrevi uma vez sobre isso num texto sobre Wilson Simonal, o negro que durante a ditadura militar se identificou tanto com a classe dominante, que mesmo tendo sofrido na pele (literalmente) todo tipo de preconceito e violência, não perdeu a chance de se utilizar de sua condição de novo rico para pôr na cadeia e fazer torturar seu antigo contador.

Se eu não aderi desde cedo à visão política de meu pai, talvez isso tenha se dado pelo fato de que minha mãe (meu pai era neto de um português imigrante) vinha de uma família de sergipanos que tinham migrado para o sudeste fugindo da fome, após a morte de seu pai. Como muitos nordestinos pobres daquela época, ela e outros membros da sua família foram parar na Baixada Fluminense, onde ela conheceu meu pai e se casou com ele. Minha mãe nunca foi nem de direita nem de esquerda e sempre pertenceu, junto com uma quantidade significativa da população brasileira, a esse imenso grupo que oscila, a cada eleição, a cada debate, entre a esquerda e a direita, sem ter muito claro o que está em jogo na discussão. Mas minha mãe, por ter tido um infância muito pobre e por ter vivido a experiência da fome sempre resguardou um sensibilidade para o sofrimento humano. É dessa sensibilidade materna que surge, talvez eu possa dizer, minha orientação política de esquerda. Mesmo que minha mãe jamais tenha chegado a compreendê-la propriamente.

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