Memória do passado e do futuro

Memória do passado e do futuro
Manifestação no Largo do Machado, zona sul do Rio, contra as ações da PM nas favelas (Tomaz Silva/Agência Brasil)

 

Por Gustavo A. J. Amarante

Ao final da década de 1970, ainda na ditadura militar, eu caminhava por São Paulo à noite. Ao passar em frente à casa de um comandante militar, fui abordado por policiais do exército; eram tão jovens quanto eu mesmo, três ou quatro, já não me lembro bem. Apontaram metralhadoras para mim e pediram em voz de comando que eu apresentasse meus documentos. Naquele momento pareciam tão assustados quanto eu, e obedeci imediatamente; pensava: se se assustarem mais eu vou ser baleado e talvez morto apenas por estar com medo. Dispensaram-me logo em seguida e retomei o meu caminho, tremendo.

Revisitei este episódio de minha vida inúmeras vezes e mais recentemente, dado o morticínio dos “PPF”, pretos-pobres-favelados, vejo com mais nitidez a imensidão dos meus privilégios. Sou homem, branco, classe média alta, médico e psicanalista; moro num bairro “europeu”, por assim dizer. Reflito sobre a quase ínfima violência que sofri e que me marcou.

Penso nos predicados “autoridade” e “autoritarismo”, e embora tenham o mesmo prefixo, percebo que não guardam nenhuma semelhança significativa entre si; são contraditórios e talvez configurem um oximoro. Penso que tem autoridade aquele que é dono de si, conhecendo-se a si mesmo extensa e incontornavelmente. Para ele, o exercício da autoridade é espontâneo e pacífico, é claro e leve, é, enfim, delicado e sutil. Conhecendo-se e sabendo-se ignorante do outro, está aberto, disponível, pleno de possibilidades e escolhas. Senhor de si não necessita de imperativos e imposições, nada tem a provar aos outros nem a si mesmo. Seus domínios são a fala, o diálogo, a escuta, o respeito, o reconhecimento do outro, ainda que estrangeiro.

De outro lado penso no sujeito autoritário, aquele que não é senhor de si e que não se conhece a si mesmo. Este necessita imperiosamente provar-se a si mesmo e perante um outro impossível, que sempre surge como uma ameaça; impõe-se com violência, arrogância e prepotência, defesas para suas inseguranças e incertezas insuportáveis. O exercício de seu autoritarismo dá-se pela explicitude, pela rudeza, pela mentira e pelo medo. Seus domínios são o grito, a ofensa, o desrespeito e o não reconhecimento do outro, ainda que familiar.

Penso na possibilidade de pensar, de um e de outro. O que é senhor de si e conhece-se a si mesmo é capaz de tolerar frustrações e, pensando, pode conformar novas alternativas e novas e diferentes escolhas. O escravo de si não suporta frustrar-se, está aprisionado pela falta de alternativas e escolhas; responde medularmente, reflexamente, sem pensar. O primeiro vê com naturalidade a responsabilidade suas escolhas enquanto o segundo sequer reconhece qualquer responsabilidade por aquilo que percebe como exterior a si mesmo. O primeiro habita-se calmamente; o segundo é locatário de fantasmas terroríficos, de ideias delirantes, de objetos persecutórios e indefinidos.

Desde este lugar de privilégio, eis o que posso oferecer à minha irmandade humana: o meu pensar e minha memória do passado e do futuro.

 

Gustavo A.J. Amarante é médico pela Escola Paulista de Medicina e psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae

 

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