Meditações

Meditações

Na trajetória e obra do francês Blaise Pascal é impossível pensar sem a presença de Deus.

 

Quando se fala da influência religiosa na vida e no trabalho de algum autor, um dos casos mais relevantes é o do francês Blaise Pascal (1623 – 1662), cuja obra contribuiu sobremaneira para diferentes áreas do conhecimento, mais evidentemente para a matemática e para a filosofia. Ao contrário do que propaga o senso comum, que distingue Pascal como um cientista que larga a razão para se dedicar à religião, a espiritualidade sempre esteve presente na vida de Pascal. Mas foi a partir de sua conversão ao jansenismo que a religião se tornou ainda mais evidente em sua obra.

O contato mais intenso de Pascal com a religião se dá por influência de sua irmã, que se tornara freira na abadia de Port-Royal. Além disso, alguns fatos marcaram definitivamente o direcionamento espiritual na vida de Pascal, como a morte de seu pai e a “milagrosa” cura de sua sobrinha, que sofria de uma fístula lacrimal maligna. Essa recuperação ocorreu quando ela, desenganada pelos médicos, tocou o Santo Espinho que existia em Port-Royal. Entretanto, essa fase da vida de Pascal é rica em especulações. Para alguns, a sua conversão aconteceu quando ele escapou ileso de um acidente com uma charrete; para outros, o cientista abraçou a vocação religiosa após ter “visões”.

O fato é que a partir daí, em 1653, Pascal abandona seus trabalhos e estudos matemáticos para se voltar à teologia. Nesse período, seus textos apologéticos se direcionam para críticas aos jesuítas e a Descartes. Pascal achava que os jesuítas reduziam a religião a ritos e dogmas, sem se preocuparem com a reflexão metafísica. Estes escritos estão em Cartas Provinciais, um conjunto de dezoito cartas em defesa do jansenismo. Sobre Descartes, registrou: “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas não pode evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus”.

Para discutir a questão da influência do jansenismo na obra de Pascal e de como seu trabalho se opôs e se opõe ao pensamento cartesiano, a CULT conversou com Luís Felipe Pondé, filósofo e professor do Programa de Estudos Pós-graduados de Ciência da Religião da PUC-SP e integrante dos departamentos de teologia da PUC-SP e de comunicação da Faap. Ele é autor de O Homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana (2001), Conhecimento na desgraça: ensaio de epistemologia pascaliana (2004), ambos pela Edusp, e de Critica e Profecia: Filosofia da religião em Dostoievski (2003), pela Editora 34.

CULT –  De que maneira a religião está presente na obra de Pascal antes de sua aproximação do pensamento jansenista?
Luís Felipe Pondé –
É difícil falar em obra antes da aproximação com o jansenismo, porque mesmo em momentos iniciais, como sua perseguição ao clérigo Saint Ange (Jacques Forton, senhor de Saint-Ange-Montcard, com quem Pascal teve suas primeiras discussões teológicas), já há uma tendência agostiniana; se o jansenismo venceu em parte da comunidade intelectual cristã francesa do século 17, é porque já havia – inclusive por conta da sensibilidade calvinista forte na França, e o jansenismo é muito próximo do calvinismo em termos de espiritualidade –  uma predisposição espiritual para tal. O Pascal importante é já jansenista, mesmo que o cientista e matemático já “brincasse” há muito tempo.

 CULT – Talvez alguns dos conceitos mais “populares” de Pascal sejam os matemáticos. O senhor acha que esse lado do trabalho dele seja menor se o compararmos com sua herança para a filosofia?
L.F.P. –
Quero dizer que ele era  tão bom em matemática que mesmo criança brincava com isso e assustava seu pai e seus amigos matemáticos e filósofos. De modo algum o Pascal matemático é menor, ele é fundamental em probabilidades, nas bases do cálculo infinitesimal, matrizes, geometria etc. Outra coisa: para ele isso era “brincadeira” porque tudo era divertissement (divertimento) para ele, mesmo a filosofia ou qualquer atividade intelectual. Lembre-se, segunda concupiscência, Agostinho, curiosidade vã do intelecto. Conta-se que quando ainda criança seu pai o pegou deduzindo tudo o que se sabia da geometria euclidiana, e que ficou em pânico com medo que o menino pirasse e proibiu seus amigos de falarem com ele para não piorar sua situação mental.

 CULT – Como foi possível a ele promover uma conciliação entre sua obra antes e depois de sua conversão ao jansenismo?
L.F.P. –
Sua obra “posterior”, ou sua obra tout court, é um desdobramento que põe em diálogo a sensibilidade teológica jansenista com sua cultura filosófica e de ciências naturais e matemáticas; não acho um problema essa “conciliação”, porque não é a rigor uma “conciliação”, mas uma efetivação de uma obra que encontra na espiritualidade jansenista um campo para a crítica ao humanismo antropocêntrico. Quando ele escreve, ele já escreve como jansenista.

CULT – Como essas mudanças na vida e na obra de Pascal foram vistas por cientistas de seu tempo?
L.F.P. –
Muitos cientistas a sua volta partilhavam de atitudes religiosas semelhantes ou contrárias, mas ainda assim dentro do escopo religioso. É importante lembrar que controvérsias teológicas eram dadas dentro de ambientes filosóficos e científicos, muitos eram padres e não leigos como Pascal – na obra dele mesmo temos cartas a padres cientistas; o foco maior de disputa era a base teológica. Pascal era um cientista de sucesso em sua época, com sua pouca idade. Contudo, e isso é uma questão complexa para pouco tempo e espaço, é que sua teoria da ciência –  ou sua epistemologia – é bastante avançada para sua época e aí está parte de sua crítica à lógica, geometria e físicas de cepa “funda-cioanalistas” ou essencialista de viés cartesiano. Sua lógica é muito mais formal e bem menos conteúdista, e muito mais de nomes do que de entes; a raiz disso é sua teologia agostiniana da insuficiência do homem em fazer algo além do que conhecimento local. Também entra aí sua crítica à linguagem, que é muito próxima às críticas neopragmáticas e wittgensteinianas. Mas no caso de Pascal, toda essa inconsistência cognitiva é fruto da desgraça teológica; sua ciência está dentro de sua teologia.

CULT – A questão da religião em Pascal o tornou uma espécie de “caso” na história da filosofia, por oposição a Descartes?
L.F.P. –
Não, Pascal não é quem é porque se opôs a Descartes. Inclusive para ele, este era “incerto e inútil”. A idéia nietzschiana de que Pascal era um grande moralista (no sentido de um anatomista da alma e da moral), mas infelizmente atormentado pela religião, é típica dos reducionismos errados de Nietzsche e de autores similares ao que poderíamos chamar um intelecto religioso como o do Pascal. A religião em Pascal é o centro de sua preocupação, e daí que parte sua antropologia, sua moral, sua política e sua epistemologia. Sua oposição teológica é ao humanismo de cepa renascentista do tipo “Pico de la Mirândola”. Descartes representa pouco neste cenário. Para Pascal, Descartes era apenas um filófoso-cientista, que não sabia ao certo qual era o problema do ser humano, alguém que se divertia com objetos pouco produtivos em termos da salvação humana, leia-se, em termos de um aumento da consciência filosófica da condição humana. Pascal é uma ancestral do existencialismo e do pensamento da angústia. Para ele, Descartes era um ilustre e inteligente equivocado.

CULT – Foi ele o primeiro crítico da razão?
L.F.P. –
O termo “razão” é variável na história da filosofia. Pascal não é o primeiro crítico da “razão”, mas é o primeiro no período mais próximo a Descartes e, por ser matemático e cientista prático, sua crítica pesa muito.

CULT – O pensamento de Pascal consegue
estabelecer um diálogo com as questões
contemporâneas?
L.F.P. –
Sim, muitas, não dá para falar delas aqui, mas seguramente com a lógica formal e axiomática, com o neopragmatismo, com o ceticismo, com descrença no ser humano, com o ceticismo político – críticas da democracia –, com a psicologia profunda de cepa freudiana – seu pessimismo com relação à estrutura psíquica humana e não à coisa sexual –, com crítica ao hedonismo materialista, à cultura da auto-estima – essa coisa brega que está virando objeto da academia – etc.

CULT – O senhor considera que a obra de Pascal é devidamente reconhecida nos dias de hoje?
L.F.P. –
Ela está em processo de reconhecimento. É uma obra difícil e pouco trabalhada no Brasil. Sua teologia dura e “anti-humanista”, pouco simpática ao humanismo hedonista de nossa época, tende a assustar as pessoas. Todavia, qualquer pessoa que gosta de pensar a condição humana a sério em Pascal tende a trabalhá-lo.

CULT – E em outros países, como é esse cenário?
L.F.P. –
Na França, evidentemente, é muito trabalhado. Fora de lá, Inglaterra um tanto. No Japão, há um scholar pascaliano. Não há nenhum trabalho que eu conheça importante publicado sobre Pascal fora da França. Seu pessimismo antropológico é que afasta muita gente dele e não sua matemática.

 O jansenismo

 A abadia francesa de Port-Royal ficou conhecida por ter abrigado intelectuais como Antoine Arnauld, Jean Racine e Blaise Pascal. Estabelecida em Paris entre 1625 e 1626, a abadia, que passou mais de quatro séculos no Vale de Chevreuse, ao sul de Versailles, tornou-se um centro jansenista. Isso devido à influência de Jean Duvergier de Hauranne, o abade de Saint-Cyran, que estudara em Louvain, onde fez amizade com o teólogo holandês Cornelius Otto Jansen. Juntos fundaram a corrente conhecida como jansenismo.

Esse movimento, baseado nas obras de Santo Agostinho, buscava de forma extremamente austera o resgate da disciplina e da moral religiosa. A polêmica de seus fundamentos estava no fato de os jansenistas criticarem a ênfase na responsabilidade humana em detrimento da iniciativa divina defendida por luteranos e calvinistas. Para eles, o homem já nascia predestinado à condenação ou à salvação, independentemente de suas ações. Desse modo, acusavam os jesuítas de buscarem brechas nos dogmas católicos.

A participação de intelectuais importantes no jansenismo deu ao movimento um forte caráter político. Por isso, acabou desarticulado na França em 1705 por Luís XIV com aprovação do Papa Clemente XI. Posteriormente, os jansenistas acabaram se concentrando principalmente na Holanda e na Itália.

Fabiano Curi
Jornalista

Bibliografia Básica
Marx
Frederico, Celso. “As origens da ontologia do ser social” (1843 – 1844).II In O jovem Marx.
São Paulo: Cortez, 1995.
Kesse, David. Marx, Religion and Sociology of Religion. In www.angelfire.com/or/sociologyshop/msor.html.
Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1989.
Marx, Karl. O Capital. Livro I, volume 1. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
Marx, K e Engels, F. Obras Escogidas, volume 3. Moscou: Editorial Progresso, 1981.
Pascal
Pensamentos.
São Paulo: Martin Claret, 2003
São Paulo: Martins Fontes, 2001
São Paulo: Edipro, 1995
Pensamentos sobre política. São Paulo: Martins Fontes, 1994
A arte de persuadir. São Paulo: Martins Fontes, 2004
Cottret, Monique. Jansénismes et lumières pour un autre XVIIIe siècle. Paris: Albin Michel, 1998
Marin, Louis. Pascal et Port-Royal. Paris: Presses Universitaires de France, 1997.
Nietzsche
Safranski, Rüdinger. Nietzsche – Biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
Fogel, Gilvan. Conhecer é criar – Um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial, 2003.
Junior, Oswaldo Giacoia. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2002.
Marton, Scarlett. Nietzsche – A transvalorização dos valores. São Paulo: Editora Moderna, 1993.

Deixe o seu comentário

TV Cult