E agora, quem poderá nos defender?
Sobre o masculinismo na esquerda, cabelos rosas e corpo sarado
“Porque eu sou é homem
Porque eu sou é homem
Porque eu sou é homem.”
“Tan. tan tan tan. tan tan taaan.”
Eye of the tiger,
música tema de Rocky Balboa (favor ler no ritmo)
De cabeça raspada e roupa excêntrica, rebolando como pouco se via, afeminado, Ney Matogrosso nos brindou com esses versos na década de 1980, período de enfraquecimento da Ditadura Civil-Militar brasileira. O tom debochado da canção, a dança ousada, a voz aguda de Ney ganhavam, nesse contexto, aura de um grito por liberdade e de rebeldia contra os machões fardados ou barbados que ocupavam todos os lugares, os milicos, as Senhoras de Santana, os comandantes, todas as forças que de um lado ou de outro do poder pareciam sempre gritar: “Eu sou homem. O caminho é homem. O futuro é homem. O poder é homem. A mudança é homem. Seja homem!”.
Crise política e neoliberalismo
Muitas são as forças, relações e sentidos que atravessam o cenário político brasileiro: a crise política, o desmantelamento institucional, a insatisfação generalizada com a vida e com a política, a ascensão da extrema-direita e o aprofundamento da polarização multidirecional ─ que não é apenas moral ou econômica, mas tudo isso de uma única vez. Há, é justo dizer, uma certa desesperança, uma saturação, um esgotamento radical que frente à intensa precarização da vida e do trabalho, frente à produção somatopolítica do adoecimento mental, transforma as possibilidades de viver em despótico sobrevivencialismo.
A descrença profunda na capacidade da política e das instituições de darem conta dos problemas da vida cotidiana é solo fértil para o acirramento dos mais variados sentimentos antipolíticos, da tecnocracia privatista à teocracia neopentecostal, passando pelo anseio autoritário do retorno à ditadura. Assim, a antipolítica se concretiza na representação dos tipos caricaturais ─ caricaturas muito sérias, não se enganem ─ que concorrerão ao posto de salvador: o empresário, o bispo, o militar, mas nenhum político. Suas promessas, de todo políticas, ofertam a eficácia das empresas bilionárias, a retidão da igreja (sic) e a força do militar.
O salvador ─ personagem constante das cosmologias ocidentais ─ atualiza-se em figuras seculares, mais apropriadas à fé racionalista de nosso tempo: são os heróis Marvel, os personagens destemidos dos animes, o policial heroico, o Rocky Balboa, antigo porém tatuado em nossa memória com sua mui clichê trilha sonora motivadora, o Schwarzenegger que se torna, além de tudo, governador. O revolucionário com sua barba por fazer e porte viril, sempre muito duro, tomado de retidão e abnegadamente dedicado à mudança do mundo, perseguido pelos maus, porém destemido.
Em comparação, se as representações dos salvadores são heroicas, as dos políticos e da política são vilanescas. Uma raposa cheia de truques, como o Senador das novelas A indomada e Porto dos milagres, um velho que dá jeito em tudo, em quem não se pode confiar, como o político do humorístico A praça é nossa, os prefeitos bonachões dos blockbusters hollywoodianos.
Não pretendo estabelecer nem aprofundar uma possível oposição entre o herói e o político, relação essa que não poderia ser outra coisa senão a representação mitológica da oposição entre vício e virtude, sujeira e limpeza, coragem e covardia e tantas outras dicotomias morais que se atualizam e constroem técnicas de governo da vida ao longo do tempo. O que me interessa no fenômeno é sua dimensão de gênero, a codificação propriamente masculinista que ordena essa ficção política, da feita em que os atributos tidos como desejáveis ou positivos (para um herói) são sempre masculinos e viris, mesmo quando atribuídos a mulheres.
O herói e sua performance viril não se destinam apenas à salvação de uma cidade, um povo ou um planeta, como vemos nas muitas dramaturgias e narrativas sobre estes personagen. O herói também funciona como ideal regulador, como exemplo, inspiração, como anúncio capaz de sinalizar e regular a diferença entre o bem e o mal.
É próprio dos salvadores religiosos e dos heróis a moralização de suas ações, posto que sempre imbuídas de virtude. É preciso combater o mal. O herói reordena o caos, reconduz os sentidos e restabelece o fluxo da vida no eterno extra-filme.
Mas qual a relação entre as formas de antipolítica que emergem frente às múltiplas crises e os heróis? Percebam que o herói é por definição um sujeito extra-cotidiano, dotado da capacidade de resolver todos os problemas que encontra em seu caminho. O salvador restabelecerá a ordem interrompida, garantindo o futuro e a vida das famílias. A virtude do herói é despótica, nada a contraria, do mesmo modo que combater o mal que promove a confusão, a desordem e a anomia é a causa final de sua ação a qualquer preço. Lembrem-se dos filmes de heróis aos quais vocês assistiram e como frequentemente, ao final de cada uma das grandes batalhas, prédios, carros, casas, ruas e cidades restavam destruídas.
Tomo aqui a figura do herói-salvador e das dramaturgias que o envolvem como uma metáfora performativa, que não apenas representa em sentido figurado, como alegoria, mas também opera como tecnologia de gênero, como práticas pedagógicas da masculinidade e do poder, instituindo, portanto, suas próprias condições de enunciação.
Em busca do corpo-nacional: masculinismo, cinema e o mundo bipolar
O filósofo espanhol Paul Preciado, em sua obra Texto Junkie, chama atenção para as intensas transformações tecno-bio-farmacológicas produzidas e concretizadas ao longo da Guerra Fria, marcadamente a partir dos anos 1950: a invenção da pílula anticoncepcional, a produção laboratorial de testosterona, a difusão mundial do primeiro filme pornográfico, Garganta profunda, o nascimento da Playboy e a realocação da pornografia, além da relativa uniformização dos paraísos sexuais e das formas de desejar.
Tais transformações terão impacto profundo nas dinâmicas e práticas sexuais e nas formas de regulação sexo-política do corpo e do poder. O anticoncepcional permitiu o desligamento entre reprodução e sexo e impulsionou, portanto, todo um novo fluxo de excitação e desejo, de experimentação e de reordenamento do espaço familiar. Ainda segundo Preciado, os Estados Unidos tinham na indústria de hormônios e farmacêutica seu maior investimento. Havia, naquele momento da Guerra Fria, uma disputa pela representação do corpo nacional, o corpo a ser consumido pelo mundo, desejado pelos povos do mundo.
Há uma intensificação da circulação de imagens que se inicia com a popularização das tecnologias cinematográficas e televisivas. Estas novas linguagens e fluxos produzirão novos modos de subjetivação, porque ensejam novas práticas desejantes e novas formas de identificação, novos e mais sofisticados aparatos de representação. O conjunto de novas tecnologias de transformação corporal nascerão também no seio da indústria da guerra.
Quais eram as representações de masculinidade consumidas ao longo da Guerra Fria? Eram aquelas dos filmes de ação, também as da recém-criada indústria pornográfica e de um mercado de trocas comerciais, se observamos os filmes que bateram recordes de bilheteria no auge da Guerra Fria: Rocky Balboa (1976), Star Wars (1977), Jaws (1975), Grease (1978), Rocky 2 (1979) e por aí vai. Se seguirmos virão Rambo, Indiana Jones, Exterminador do futuro… Fenômeno semelhante se percebe em desenhos animados e outras iconografias contemporâneas.
Ainda conforme Preciado, a disputa em torno de um corpo nacional viril e são, marca do mundo bipolar da Guerra Fria, opunha os modelos de masculinidade soviéticos ou mais genericamente socialistas aos do capitalismo. Um exemplo clássico dessa disputa por imaginários é a luta de Rocky contra o russo Ivan Drago. No enredo do filme, Ivan é construído como vilão e Rocky precisa se superar para vencê-lo. Esse discurso específico sobre masculinidade, que opera em Rocky, fará parte do ideal de homem do capitalismo, aquele que faz por si mesmo, o novo Crusoé, protótipo do sujeito meritocrático do neoliberalismo e sua parafernália coach.
Não podemos desconsiderar que também haverá no interior dos grupos socialistas, comunistas e revolucionários a construção de um “corpo-da- revolução”, frequentemente viril, malhado, masculino e heterossexual. O corpo masculino e sua virilidade se tornarão expressão da disciplina, de uma virtude do autocuidado, enquanto que mulheres, afeminados, gordos e descuidados seriam sempre presenças indesejadas, porque fracas.
MacRae, em seu clássico texto Os respeitáveis militantes e as bichas loucas, comenta os incômodos causados em um jornal de esquerda no qual conquistaram espaço para escrever sobre a luta dos homossexuais. Os problemas com os editores começaram logo, parecia não haver espaço para elementos de luta das comunidades gays da época, o festejo, a desmunhecação. Para alguns socialistas e militantes dos partidos comunistas da época, a homossexualidade era uma degeneração burguesa.
Pedro Lemebel, performer, escritor e artista do Chile, nos dá alguns indícios dos incômodos que seu corpo afeminado, sua voz de viado e sua estranheza causavam nos homens do Partido Comunista Chileno, em sua belíssima poesia “Falo por minha diferença”:
Por isso, companheiro, lhe pergunto
Existe ainda o trem siberiano da propaganda reacionária?
Esse trem que passa por suas pupilas
Quando a minha voz fica doce demais
E você?
O que fará com a lembrança dessas crianças
Batendo punheta e mais outras coisas nas férias em Cartagena?
O futuro será preto e branco?
O tempo em noite e o dia de trabalho sem ambiguidades?
Não haverá uma bicha em alguma esquina
Desequilibrando o futuro do seu homem?
Nos deixarão bordar de pássaros as bandeiras da pátria livre?
O fuzil fica com você
Que tem sangue frio
E não é medo não
O medo foi passando
De tanto esquivar facas
Nos porões sexuais por onde andei
E não se sinta agredido
Se lhe falo dessas coisas
E olho para seu volume dentro da calça
Não sou hipócrita
Acaso as tetas de uma mulher não desviam seu olhar?
Você não acha que sozinhos na serra alguma coisa haveria de nos ocorrer?
Mesmo que depois sinta ódio de mim
Por corromper sua moral revolucionária
Você tem medo de que se homossexualize a vida?
É vasta a literatura que se desdobra sobre a exclusão de afeminados e homossexuais nas fileiras de luta da esquerda política durante muitas décadas. No Brasil, o caso Herbert Daniel é ilustrativo, com que recomendo a leitura de sua biografia escrita pelo prof. James Green.
Paralelo aos conflitos pela constituição de um ideal nacional de masculinidade, nas ruas e guetos outras movimentações aconteciam, marcadamente os movimentos negros, LGBTs e feministas que irão, neste período, tomar de assalto o campo das discussões públicas e do fazer político. Stuart Hall vai chamar isso de descentramento do sujeito universal. Com isso construímos uma série de avanços, mas a política e as arenas de poder, apesar das mudanças que sofreram, seguiram sendo majoritariamente masculinas, brancas, cisgêneras e heterossexuais.
A extensão da atuação dos movimentos feministas esteve muito além da luta política cotidiana, de manifestações e reivindicações de direitos. Caminhou rumo à elaboração de sofisticadas epistemologias críticas, como se pode ver nas obras de Sandra Harding e Donna Haraway. Tais críticas direcionaram-se ao cinema, à linguagem de modo geral, às tantas práticas de representação com as quais travamos encontros ao longo de nossas vidas. Transformar criticamente a representação de homens e mulheres no cinema é, ainda hoje, um grande desafio. Como o cinema não é o tema deste ensaio, recomendo para aqueles que desejem se aprofundar na temática a obra Alicia ya no: feminismo, semiotica y cine, da teórica feminista e queer Teresa de Lauretis.
O presente, o assalto conservador e a remasculinização da pólis
Recentemente, ouvi de um conhecido influencer de esquerda, um youtuber que faz conteúdos (muito ruins, diga-se de passagem) sobre política, que seria impossível uma revolução, porque os militantes e revolucionários têm cabelo rosa e não são fortes e viris. Dei risada. Mas não é um caso isolado, é sintomático de um discurso masculinista que, como já expus longamente acima, tende a surgir em momentos de crise política.
Não apenas a esquerda revolucionária tem sido tomada por delírios de virilidade, como também outros campos mais conservadores. Lembro-me quando Ciro Gomes disse que, para resolver o problema do Brasil, era preciso “testosterona”; ou de Lula que, nas vésperas da eleição, fez questão de se mostrar fazendo exercícios físicos, casando com uma mulher mais nova e ainda dizendo que “tem mais tesão para política que muito jovem”. Percebem a recorrência da figura masculina como salvadora? Bolsonaro com o seu “imbrochável” caminha pelo mesmo sentido, assim como as fotos de seus filhos em poses viris com armas.
Entre aqueles que pregam uma revolução armada feita por homens jovens, sarados e de barba e aqueles que amam as exibições de carro e armas não há uma grande distância. Reside até mesmo na condenação de uma esquerda cirandeira. Afinal, usar flores, diplomacia, diálogo e afins remete ao feminino.
É preciso que estejamos atentas, caso contrário, logo voltaremos a ser, no campo da política, as aberrações que os machinhos não querem por perto. Afinal, assim todos eles ficam livres para a broderagem de conjuntura, ops, quis dizer, para as próprias análises de conjuntura.
Helena Vieira é escritora e transfeminista.