Mas chama-se corpo

Mas chama-se corpo
Wagner Schwartz (Foto Mário Miranda Filho)

 

É preciso limpar o figurino da inteligência.”
Maria Gabriela Llansol

I

Diante das recentes notícias envolvendo Anielle Franco e Silvio Almeida, fiquei pensando sobre a diferença entre corpo e imaginação. Ficar a pensar foi a única opção após o susto.

Primeiramente, eu me separei deles. Resultado: “eu”, sujeito que vive e faz escolhas”; “eles”, ficção. Quero dizer, eu vejo o corpo deles. Eu posso ler o que eles escrevem, escutar o que eles dizem. Eu posso ler o que os outros dizem sobre eles. Mas eu não posso ser eles.

Pensei um pouco mais longe: o mundo é habitado por um monte de “eus”, criamos o “eles” para imaginar, para pensar em grupo — quando é possível. Podemos apenas nos aproximar uns dos outros. É impossível estarmos juntos. Nada se pode fazer junto. Podemos imaginar estarmos juntos. Estamos mesmo uns ao lado dos outros.

Se pudéssemos “estar junto”, dar as mãos seria desnecessário. Entre outras coisas.

O que multiplica o “eu” é o desejo de se ver no outro, de se descobrir no outro, para evitar o isolamento que já nasce conosco. Podemos descobrir desejos aparentes uns nos outros, conversar, fazer coisas parecidas. Tudo isso requer tempo, cultura, educação e, às vezes, a lei.

O amor é o corpo de uma conquista, construído entre duas ou mais pessoas, no tempo e na linguagem. A gente não vê o amor, o que vemos é o corpo. O corpo do outro e a sua evolução: gesto, sensibilidade, orgasmo. Não tocamos o amor. Tocamos o corpo. E para excitar a sensação amorosa, trocamos a visão panorâmica pela singular. O corpo do outro passa a fazer sentido, é nele que o desejo vibra e começa. E não termina, porque o corpo amoroso vive no imaginário de quem ama.

O corpo de um toca e imagina o outro. Imaginar é ficção. Evolui. Combina. O corpo pode imaginar o que quiser e como quiser. Pode. A imaginação é parte do que o anima. O corpo imagina para estar com o outro. Imaginar é a única maneira de se conectar. Não há outra. Imaginar é um mistério resolvido — assim como andar, comer, dormir. Nascemos imaginando.

Uns elaboram a imaginação como planejam uma casa. Nova. Leem livros, assistem a filmes, escutam músicas, conversam com diversas pessoas, viajam ou permanecem em casa, a viajar. Na memória. Outros se deixam levar pela imaginação dos outros. É mais simples: afirma o estar em grupo. Tem também os convictos de que os outros imaginam como eles. Eles acreditam estar no corpo do outro e no seu próprio corpo. A crença permite.

Criei uma performance na qual entrego o meu corpo ao corpo do outro e ao seu imaginário. Digo ao outro que ele pode dobrar e desdobrar o meu corpo, nu. Dobrar e desdobrar as minhas articulações, tal qual ele faria com um origami. Esse outro não pode fazer o que quiser. Antes de tocar o meu corpo, o seu imaginário recebe uma direção: dobrar e desdobrar. Mais do que isso, é outra performance. Não mais a minha. Mas a dele.

O desafio dessa proposta: como negociar a diferença entre corpo e objeto?

Imagino ser um objeto em cena, mesmo que eu e o outro saibamos ser invenção. Algumas pessoas têm consciência dessa invenção e tocam o meu corpo gentilmente, assim como fazem com qualquer outro corpo tão parecido com o delas. Outras, não.

Há objetos frágeis que também exigem cuidado. Um corpo, no entanto, respira, imagina, sente prazer e dor. A relação que os participantes mantêm comigo reforça essa consciência. Um objeto, caso quebre, há quem possa arrumar. Um corpo quebrado é um corpo ferido enquanto estiver vivo. É porque não é só o corpo que se fere. Mas a memória. Imaginar o ferimento faz doer em si e nos outros. Imaginar dói. Tantas pessoas evitando imaginar.

Tocar o outro exige saber — um querer maduro. Essa inteligência precisa ser trabalhada. Diariamente. Aprende quem escuta não só a própria imaginação, mas a imaginação do outro, de quem se aproxima de quem não é você. Aprendemos quando crianças: impossível ser o outro. Quando se morre, é você quem morre. Sozinho. Quem toca o outro é o meu corpo e o meu imaginário, toco alguém que não sou eu. Toco o outro com a minha inteligência, com a minha vontade e desejo de tocar. Se as imaginações se cruzam: aleluia. Caso contrário, é preciso se desculpar. Houve um engano, uma falha de compreensão. A minha imaginação imaginou sozinha. Quem nunca imaginou sozinho?

Há também o imaginário que imagina o que o outro imagina por estar certo de que conhece tanto a própria imaginação quanto a dos outros. Esse imaginário tem muitos seguidores. Vive em um universo de fiéis seguidores. A fé é o único meio pelo qual é possível extrair a certeza de ser eu e o outro.

A fé move montanhas, dizem os religiosos. A fé move a interdição, segreda o imaginário seguro — de si e dos seus seguidores. Popularizar a fé é um trabalho de grupo. Existe o imaginário que sabe demais e sabe tanto que consegue comover os seus seguidores com o acúmulo de ideias sobre o seu imaginário e sobre a história do corpo. E quando precisa agir como a história, age com o próprio imaginário.

O imaginário não tem idade nem moral. Por isso, tantas vezes, silencioso. Se o corpo cede às vontades do imaginário silencioso, ele sabe que está protegido pelos seus seguidores. O corpo que utiliza o imaginário silencioso no corpo do outro tem poder. Muito poder.

II

Estou triste, tristíssimo. Primeiro, escuto a vítima. Não importa se ela denunciou o assédio ontem, hoje ou amanhã. Que bom que ela denunciou, que conseguiu denunciar. Toda a minha solidariedade. Em seguida, olho para o acusado. Ele não é um qualquer, mas alguém que representa o “nós”.

Ponho os cotovelos sobre a mesa. A minha cabeça cai. O meu coração acelera. Crio argumentos para o episódio. Leio artigos, converso com amigos sobre esse evento grave, gravíssimo. Não é mais a democracia que está em jogo, mas o corpo. E, no corpo, as leis não são subordinadas ao Estado. O corpo tem as próprias leis. O Estado deveria saber.

Por isso, é tão difícil julgar um episódio como esse. Publicamente. E com um público que espera por cortes de cabeça no celular. Guilhotinar, hoje, ficou mais fácil. Decepar cabeças na praça espirrava sangue na roupa. O sangue na tela parece feito de píxel.

Guardo os livros de arte na estante. Os filmes de arte, também. Desligo o aparelho de som. A conversa no WhatsApp, no telefone, é urgente. Como fazer caber no corpo tamanha frustração? Ora, o acusado já me ajudou a investigar o racismo internamente — essa forma de discriminação que ganha voz quando menos percebemos.

Acredito que preciso me explicar.

A arte foi para a estante não porque se tornou obsoleta, mas porque virou corpo. Não sei você, mas, nessas horas, é por meio dela que consigo olhar para o outro, sem o abater. Sem me abater.

A arte faz funcionar o imaginário. É ali que faço conexões. No imaginário, eu posso me aproximar do caso, perceber a dor da vítima, refletir sobre as violências que se transformam em não-violências na vida social. O que deve ficar para mim desse embate para que o meu corpo não apague o que havia construído até então?

É fácil condenar idiotas. Difícil é quando a idiotice está indexada a um corpo que sabe. A inteligência do agressor deve ser cancelada após a acusação? Devo agora ler outros autores? O que alguém construiu se torna argumento morto de um dia para o outro?

Uma colega dizia “descanse em paz” para cada mente brilhante que frequentava caso aparecesse em público com um discurso opressor. O que importava para ela era o presente, porque no presente essa colega estava ativa. Com o seu grupo. O passado se misturava com o presente. Ao dizer “descanse em paz”, ela queria evitar as contradições em seu corpo e no corpo de seus próximos assim como esta época manda.

A igreja foi a responsável por transmitir o comportamento “do bem”. Estamos na construção de outra igreja: fora da igreja. Pessoas querem paz. Com os seus. Paz, para dormir com o imaginário puro. A pureza da liturgia dos domingos.

Não vou abrir mão da inteligência do acusado e de outros — tantos — como ele, pois as pessoas me interessam de forma parcial. Gosto de partes das pessoas. De partes do que elas produzem. Impossível gostar de uma pessoa e de sua produção por completo. Querer gostar de tudo é um querer imaturo, tirano, cabe fácil nos programas políticos e religiosos. É claro que vou ser acusado de oportunista, pois, o argumento do oportunismo deixa os crentes mais seguros.

Minha solidariedade à vítima é imediata. Inquestionável. Todas as violências que vivi me levam a compartilhar da dor de quem foi subordinado à estupidez viril. O desafio é saber o que fazer com o que o acusado produziu quando não estava sob a influência de suas obsessões.

Importante relembrar: alguns acusados foram perdoados na História. Outros não. É notório. Algumas pessoas tendem a perdoar com mais facilidade aqueles que importam ao grupo que frequentam, não é mesmo?

Esse texto não tem como objetivo livrar o acusado da acusação. Quero, com ele, lidar com o comportamento do acusado no meu corpo. Sentir raiva e admiração. Ao mesmo tempo. Não excluir a admiração para ser bem-vindo nos autos dos justos. Repudio o que, segundo a vítima, ele fez. Insisto. E, ainda, não posso fazer nada por ele fora do meu corpo. Não sou ele. Não quero ser ele. Escrevo para manter a minha participação no mundo, sem apagar as emoções contraditórias que constituem o corpo da História.

Wagner Schwartz é coreógrafo, performer e escritor. Autor de Nunca juntos mas ao mesmo tempo (2018) e A nudez da cópia imperfeita (2023), ambos publicados pela Editora Nós.

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