Mas chama-se alegria

Mas chama-se alegria
Frames do filme A paixão segundo G.H. (divulgação)

 

“A razão considera as diferenças, e a imaginação as semelhanças entre as coisas.”

Percy Bysshe Shelley

Samira Nancassa. Maria Fernanda Cândido.

Pode ser que Clarice tenha performado aqueles pais que desejam registrar seus filhos com nomes semelhantes. Optou pela sonoridade. Como sempre. A sonoridade do que lhe parece íntimo.

Janair. Gêagá.

G.H. é a patroa. Mora em seu apartamento, numa área nobre do Rio de Janeiro. Cercada por palavras, sabe como as utilizar. Sabe dizer o que experimenta. Sabe dar ordens, decorar o seu espaço. Mas, nesse momento — no filme e no livro — o saber não justifica mais a necessidade, a necessidade que cria a linguagem. G.H. precisa experimentar um corpo onde as palavras que nunca conheceu estejam à vontade. Ela sabe que algo acontece. Por que só agora? A sua vida acontece.

G.H. tem formação humana. Uma escolhida. Quando sorri, é desejada. Quando fala, a escutam. Os escolhidos podem escolher outros e mais outros para serem chamados de escolhidos. Ela pode escolher. O prazer é uma das melhores escolhas, tal qual uma terceira perna que a previne de cair e morder a língua. Os limites é que precisam de disfarce.

Saber outra coisa que não seja o que já se sabe é um esforço. Sair de si. Com o que já se sabe, é possível conversar sem tirar a beleza do suporte. Para as patroas, já basta. O mais é o que vem da natureza: o céu, o mar, o mundo visto de cima. O nascer do dia. O que lhe é servido sem a necessidade de se concentrar.

— — — — — — Janair é a empregada. Tem informação humana: se faz certo, é agradecida. A verdade guarda para mais tarde. Passa o seu dia no apartamento da patroa. Sabe como a tolerar. Sabe oferecer o que ela deve experimentar. Este saber justifica a sua necessidade — de trabalhar. Não só agora. A necessidade cria a linguagem. Janair precisa experimentar um corpo sem ordens. Algo acontece. Por que só agora? A sua vida vai acontecer.

Vou contar o que as aproxima.

Samira Nancassa e Maria Fernanda Cândido são as pessoas deste filme, que não é um filme. Assim como o romance não é um romance. Em um filme existem atores; em um romance, personagens. Na tela, aquelas que se apresentaram em corpo e palavra são pessoas. Assim como você. Escrevo para os que se encontram no reverso das formas estéticas, éticas e poéticas confirmadas. Saber pelo não impulsiona a curiosidade, nos leva ao quarto da empregada.

Outro era o tempo em que se usava o termo “empregada”. Hoje, o termo mudou; a cor e a função continuam. No livro e no filme, Janair dorme no mesmo espaço que uma barata. Coabitam. Cada qual no seu canto. Janair não grita. A barata não foge. Fora do quarto, Janair se torna imperceptível entre os móveis de G.H. Seu uniforme a contextualiza. Age como deve agir, tal qual quer a patroa. Tal qual sobrevive uma barata, Janair foi predestinada a desaparecer.

Até ir-se embora.

“No dia anterior a empregada se despedira”, diferença factual entre A Paixão de Clarice-Luiz e outras interpretações de G.H. — aproximativas do elo entre a cor da pele e o serviço. Para a escritora e o cineasta, a empregada não é despedida, não sofre a ação. Janair é ação. Tanto no livro quanto na tela, o pronome reflexivo é visível. E é uma delícia.

G.H. recebe das mãos de Janair um molho de chaves. Para muitos, um objeto funcional; para G.H., terço infernal — chamado para o ambiente que não se deve visitar. Convite para deixar o Paraíso. Janair se vai.

O que fazer quando uma pessoa se despede? Quando se livra do significado que a define como pessoa de alguém? Janair tem nome ou uma marca? Para uma patroa, não deve ter corpo.

Corta.

Antes da primeira projeção do filme, em 2023, durante os festivais de cinema do Rio de Janeiro e de São Paulo, escutamos Luiz Fernando Carvalho expressar a sua gratidão ao projetista e aos responsáveis pela limpeza da sala de cinema. O que fazer com o que agora sabemos para que a sensação de prazer não desapareça? Prazer que somente corpora quando finge desconhecimento do que deve permanecer escondido?

Ação.

Quando a empregada se vai e a patroa reconhece a sua partida, cria-se um livro, um filme — porque esse é um acontecimento. Neste caso, milagroso, porque oferece à patroa a possibilidade de conhecer o lugar de quem partiu. A patroa se “reduz” ao lugar da empregada: entra com o status de sua cor, corpo, classe no quarto de despejo. Conflito.

Janair deixa o quarto limpo, feito “ousadia de proprietária”, para que a patroa se perca ainda mais e não encontre, no seu antigo espaço, o que as difere.

O inferno são as palavras. Dos outros. Se a empregada viveu fechada e muda, a patroa agora descreve o exíguo para tentar se manter longe de sua maldição. Mas, G.H. foi pega: o corpo de quem não sabe sofrer entrou no espaço do corpo de quem aprendeu a sofrer. Não teve opção. G.H. se multiplica. O feitiço a impede de se distanciar da ação. Palavrear uma experiência não mais a mantém fora do quarto.

Se o inferno existe, saber é a causa. Na Bíblia, manifestou-se através da árvore do conhecimento do bem e do mal. Em Clarice-Luiz, no molho de chaves. (Atenção, a cena é curta. Janair é apenas uma aparição. Rápida e eficaz.) O leitor distraído culparia a barata, assim como os crentes culparam a serpente. Sem dúvida, o repugnante é autoritário. Fácil de ser alvo. Distancio-me.

G.H. decide viver-se como Janair. E você?

G.H. entra no quarto projetado para Janair. Investiga o que quis desconhecer. Encontra-se ali. G.H. se difere de Janair; não mais o que as distancia. O nojo não mais existe. E, agora? Como trazer para um quarto exíguo todo o conceito de humanidade? Como viver sem nojo fora do quarto? O que fazer quando sabemos que as poltronas do cinema foram limpas por pessoas que talvez conheçam o quarto de despejo? Que há alguém em uma cabine fechada a nos servir belas imagens durante 124 minutos?

Corta.

Janair se reproduz no corpo de G.H. e você está excitado com uma barata?

Melhor deixar a sala de cinema. Atender ao telefone durante a projeção. Fechar os olhos. Bocejar. Comer pipoca para ter o que fazer com as mãos. Julgar a narrativa distante, uma reprodução inverossímil. Desembrulhar uma bala de hortelã para espantar a sonoridade do que te deixa cada dia mais fresco.

E continuar imóvel na sala de visitas de G.H.

A paixão segundo G.H.
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Roteiro: Melina Dalboni, baseado na obra homônima de Clarice Lispector
Elenco: Maria Fernanda Candido e Samira Nancassa
Duração: 124 min.
Estreia: 11 de abril de 2024 

Wagner Schwartz é coreógrafo, performer e escritor.  Autor de Nunca juntos mas ao mesmo tempo (2018) e A nudez da cópia imperfeita (2023), ambos publicados pela Editora Nós.


> Assine a Cult, a mais longeva revista de cultura do Brasil. 

Deixe o seu comentário

Novembro

Artigos Relacionados

TV Cult