Marie NDiaye: literatura do despertencimento

Marie NDiaye: literatura do despertencimento

O mal-estar no mundo e o esfacelamento do sujeito em Coração Apertado

Ana Amelia Coelho

Divulgação/Hélie Gallimard
Marie NDiaye: literatura que colocou em cena o despertencimento

Coração Apertado é o décimo romance de Marie NDiaye e o primeiro a chegar ao Brasil. Aclamada em 2009 com o Prêmio Goncourt pelo romance Trois Femmes Puissantes [Três mulheres poderosas], NDiaye já se consolidou como um dos grandes nomes da literatura contemporânea francesa. Aos 17 anos, ainda no ensino médio, teve seu primeiro romance publicado, Quant au Riche Avenir [Quanto ao rico futuro], título que soa como um presságio de sua própria carreira. Hoje, ela conta com uma dezena de romances e coletâneas de contos, peças de teatro, histórias infantis e a coautoria do roteiro de White Material, último filme de Claire Denis, estrelado por Isabelle Huppert.

Tanto os livros de NDiaye como os de Jean-Yves Cendrey, seu marido, não passam despercebidos: seja pelo universo de sordidez de suas escritas, seja por suas atitudes e declarações públicas. Recentemente, NDiaye disse achar “monstruoso” o governo de Sarkozy, o que provocou discussões acaloradas a respeito da liberdade de expressão e de um certo “direito de reserva” a que os escritores premiados deveriam se submeter.

Criada na periferia parisiense, filha de mãe francesa e pai senegalês, NDiaye dedica-se integralmente à escrita – mas a uma escrita que não pretende, como poderíamos supor, encarnar a voz dos desfavorecidos, imigrantes e excluídos, temas de incessantes debates na França da atualidade. Ainda assim, suas obras colocam em cena o despertencimento: famílias fragmentadas, rupturas e deslocamentos movidos pela crueldade e pela violência. E, portanto, elas não se furtam a uma leitura crítica da realidade; pelo contrário, demonstram quanto é problemática a tomada de posição, qualquer que seja: o mal-estar no mundo.

É justamente o mal-estar que guia a leitura de Coração Apertado. O mundo de Nadia, a narradora, perde sentido: “Quando foi que começou?”. Nadia não sabe desde quando o mundo olha atravessado para ela; só lhe resta lançar perguntas que se acumulam, sem resposta, e demonstrar algum inconformismo frente às injustiças que lhe escapam do entendimento – mas das quais se sente vítima.

Universo hostil e abjeto
Vergonha e desconforto penetraram, não se sabe como, em sua harmoniosa vida de professora primária, a mesma de seu marido, Ange Lacordeyre. Ambos são proscritos do ambiente escolar que tanto prezavam, impedidos de exercer a nobre profissão em nome da qual tudo foi sacrificado. Ele, ferido por razões que desconhecemos, é obrigado a refugiar-se em seu apartamento, preso ao seu leito. Ela, ameaçada pela presença de Noget, um vizinho indesejado, e intoxicada pelo odor do corpo de Ange, perambula por uma Bordeaux igualmente asfixiante, desértica sob uma bruma espessa e cinzenta. Tudo que lhe era familiar – a rotina profissional, a vida doméstica, o traçado das ruas de sua cidade – torna-se hostil e abjeto. Não somente a carne ferida de Ange lhe causa asco, mas também o corpo de Nadia manifesta sensações que não domina, tampouco consegue registrá-las com precisão. Como diagnosticar o que está vivendo: gravidez, menopausa ou obesidade?

Num percurso labiríntico, Nadia tenta recompor-se, alimentando o monstro que habita suas entranhas. Como num processo de cura, a narradora-personagem inocula no próprio corpo o mal que a consome. A própria escrita do romance, dividido em 38 seções, parece passar por esse tratamento: expondo-se em frases adversativas inconciliáveis, em diálogos desconcertantes, mas também abrindo-se a outro discurso, em itálicos – uma segunda voz que, tal qual um apêndice ou um parasita, busca fazer um só corpo com a narração no presente.

Com o passar das páginas, a narrativa desenrola-se numa via ambígua: ao mesmo tempo em que Nadia relata friamente o que vê, o leitor suspeita que ela o desorienta. Tanto a ferida de Ange (nome incomum, Anjo) como a onipresença de Noget (ilustre professor que todos conhecem e reverenciam, exceto Nadia) transbordam qualquer realismo. Mesmo sem atingir os limites de uma narrativa fantástica, o romance assemelha-se ao absurdo do teatro de Ionesco e Beckett, ou mesmo a Kafka, e acaba por tomar contornos alegóricos. Eis por que não se torna difícil ler Coração Apertado como um conto moral ou uma parábola bíblica. Nadia, ansiando por respostas, atravessa o mar para encontrar seu filho – e o que à primeira vista era uma fuga acaba sendo o caminho para reconciliar-se com suas origens.

Ainda assim, o mal-estar é tão perturbador quanto acreditar que é possível se livrar dele. A cirurgia de NDiaye deixa no leitor não só uma cicatriz, mas novos sintomas.

Coração Apertado
Marie NDianye
Trad.: Paulo Neves
Cosac Naify
272 págs. – R$ 50

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