Mapa interativo identifica territórios guarani espalhados pelo Brasil

Mapa interativo identifica territórios guarani espalhados pelo Brasil
Índios guarani em área de proteção ambiental a pouco mais de 50km da cidade do Rio de Janeiro (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

 

 

Em tempos de violência intensa contra populações indígenas, quanto mais informação e dados sobre a situação destes povos, melhor. É neste contexto que emerge uma iniciativa importante: o Mapa Guarani Digital, site colaborativo e interativo que localiza todas as terras de povos guarani do Brasil, além de identificar os sítios arqueológicos de sua tradição e trazer dados sobre a situação legal das terras indígenas que englobam as aldeias. O lançamento oficial da iniciativa acontece na próxima terça (29), na ONG Ação Educativa, região central de São Paulo.

Tecnicamente em produção desde o final da década de 1970, o projeto foi criado por uma longa parceria entre duas organizações: a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), que reúne líderes indígenas de diversas aldeias Guarani do Brasil, e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), associação sem fins lucrativos que, formada por antropólogos e indigenistas, tem como objetivo contribuir para que os povos indígenas assumam “o controle efetivo de seus territórios”, segundo a descrição do estatuto do CTI.

“A ideia é auxiliar no monitoramento dos processos de demarcação, para divulgar o que o governo está ou não fazendo e pressionar por mudanças, se for o caso”, diz o coordenador do projeto, o antropólogo Daniel Calazans.

O Mapa Guarani Digital, que tem apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da Embaixada Real da Noruega, foi pensado com a intenção de “descentralizar a gestão dos dados sobre as terras indígenas” e divulgá-los de forma acessível, além de unir os povos Guarani por meio da informação sobre a situação de suas terras.

“Descentralizar os dados é essencial para manter um monitoramento sempre constante. Uma organização sozinha é incapaz de fazê-lo, já que são mais de 200 terras indígenas só no Brasil”, afirma Calazans.

No portal, todas as aldeias dos povos guarani do país estão mapeadas – atualmente, são 278. Ao clicar sobre qualquer uma delas, o visitante tem rápido acesso a uma série de informações detalhadas, como o nome da aldeia, a que subgrupo guarani ela pertence (por exemplo, Guarani Mbya, Ava-Guarani e Guarani Kaiowa) e em que terra indígena (área maior, que envolve uma ou mais aldeias próximas) ela está inserida.

Os traços que formam as fronteiras trazem informações sobre a situação fundiária de cada uma delas, de acordo com as etapas de demarcação definidas pela Constituição: “sem providências” (terras ocupadas sem regularização), “em estudo” (em processo de análise pela Funai), “delimitadas”, “declaradas”, “homologadas” e “regularizadas” (os quatro estágios finais da demarcação). Ao todo, 198 terras indígenas estão mapeadas. 

Mapa Guarani Interativo
No Brasil, os guarani se concentram principalmente nas regiões Sul e Sudeste (Reprodução/Mapa Guarani Interativo)

Além disso, a plataforma faz um registro de 255 “aldeias antigas” – espaços que, historicamente, já foram ocupados por aldeias, mas que ao longo do tempo foram desapropriados e que hoje não têm ocupação indígena. Estes dados, especificamente, foram conseguidos através da memória oral de anciões Guarani – afinal, são locais que seus povos habitavam há menos de um século.

“É muito forte a memória da ocupação das aldeias antigas. Hoje, os índios estão em uma luta para voltar a estes espaços, e mostrá-los no mapa é uma forma de deixar claro que o território indígena encolheu em pouquíssimo tempo”, explica o coordenador.

Para endossar a ocupação histórica e ir além da memória, o site mapeia também cerca de 1100 sítios arqueológicos de tradição guarani, importantes para lembrar ao internauta que sua cultura já existia muito antes da chegada dos europeus. Os sítios, assim como os dados sobre as aldeias, vêm sendo sistematizados ao longo de décadas pelo arqueólogo Francisco Noelli, da Universidade Estadual de Maringá, que dedicou sua vida ao estudo e ao auxílio das comunidades Guarani do Brasil.

Segundo Calazans, todas essas camadas de dados tornam o mapeamento realizado pela Comissão Yvyrupa e pelo CTI o mais completo sobre terras indígenas brasileiras – já que outros, como o da Funai, leva em consideração apenas as terras já em processo de demarcação. “Nesse tipo de projeto, é indispensável abordar a história Guarani. Sem ela, o mapeamento é necessariamente incompleto”, pontua.

Mapeamento em conjunto

Embora a plataforma digital só tenha nascido agora, os dados que a compõem vem sendo captados pelo menos desde 1979, quando o CTI começou a mapear as aldeias Guarani, com ênfase no Sul e no Sudeste do Brasil, sempre recebendo ajuda dos índios. O processo se intensificou junto à luta indígena pela demarcação, nos anos 1980, e mais ainda na década seguinte, quando o CTI passou a agregar também dados da Funai e de pesquisadores do Mato Grosso do Sul em sua coleta de informações.

Em 2006, com o objetivo de articular a luta pelo acesso à terra dos povos Guarani, uma assembleia com mais de 300 lideranças políticas e espirituais indígenas formou a Comissão Nacional de Terras Guarani Yvyrupa. A partir daí, Yvyrupa e CTI passaram a trabalhar juntos, e a parceria resultou no Atlas das terras Guarani do sul e sudeste do Brasil (2015), publicação impressa que trazia, pela primeira vez, além do mapeamento de aldeias, um quadro com a situação fundiária de cada terra indígena – e que precedeu o Mapa Guarani Digital. 

“O processo sempre foi colaborativo. As lideranças indígenas fizeram o mapeamento em si, e nós entramos com o instrumental. Hoje, são os próprios índios que inserem os dados no sistema”, conta o coordenador.

Segundo Calazans, depois do lançamento do portal, a ideia é continuar alimentando a plataforma com novos dados e, mais adiante, com materiais audiovisuais dos próprios índios. O CTI e a Yvyrupa pretendem, também, trazer outras informações, como um mapeamento de aldeias antigas que não estejam na memória dos anciões vivos, mas que figurem em documentos históricos.

Além disso, o mapeamento será atualizado ao longo dos anos, dada a natureza “orgânica e mutável” das terras indígenas – que, além de serem culturalmente diversas e amplamente distribuídas no Brasil e no resto da América do Sul, “são muitas vezes cortadas por novas cidades, estradas, plantações e novos pastos”, nas palavras de Calazans. 

Apesar de parecer algo trabalhoso, o coordenador salienta que a atualização incessante deve ser algo positivo, pois fará com que o CTI e outras organizações estejam sempre focados na situação das terras indígenas. “O mais importante é que a sociedade civil faça um monitoramento independente das ocupações Guarani para cobrar o Estado sobre isso. A sociedade brasileira deve isso a eles.”

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