Mãe, Pandora
(Arte Revista CULT)
Por Laudeir Borges
a primeira casa foi seu colo
seu corpo, o primeiro alimento
para o segundo, sangrou galinhas
depenou, eviscerou, picou, temperou
pôs no prato que, depois, limpou
no chocalho do xique-xique
soprou as primeirinhas palavras
na repetição dos dias
mastigou os pubescentes palavrões
noutra aprendizagem,
bateu na boca pela boca suja
puxou orelha, que silenciasse
enrodilhou os passos em cipó-de-são-joão
que andasse, caísse e levantasse
emplastou feridas com sal e erva-de-nossa-senhora
mandou pra chuva porque chovia
e esperou com água quente, toalha talvez macia
que brincasse no terreiro
que trepasse no abacateiro
que arrancasse matos
vícios e outras inconveniências
exigiu coragem singular
incutiu medos plurais
indicou o caminho da escola e que aprendesse
o ônibus pra cidade e que voltasse
escancarou defeitos, que entendesse
que aceitasse e, se possível, perdoasse
já idosa, não há mais lições
foi o pensamento
ó engano
pegou a caixinha de preciosos guardados
onde o 3 X 4 da mãe, do pai
(que saudade do meu velho!)
onde parcos brincos, pobres anéis
seus ouros, monóculos,
batistérios, bentinhos
papéis sem data
espalhou na cama os variados tesouros
sem valor de uso, sem valor de troca
e ali do fundo da caixa vazia
onde o tempo aprisionado
de onde nada mais havia
entornou o sofrimento
Laudeir Borges, 52, é jornalista, poeta e designer gráfico, mineiro residente em Brasília, integrante do coletivo literário O Grito