Mãe-coruja: o sonho de Liz

  1. Carla Rodrigues, Carlos Henrique de Oliveira Nunes, Isabela Pinho, Israel Tainan Lima e Chaves, Julia Werneck, Lohana Morelli Tanure e Paula Gruman disse:
Mãe-coruja: o sonho de Liz
(Ilustração: Marcia Tiburi)

 

Minha irmã e eu fomos a um bar, no momento em que tudo já havia retornado. Nesse bar tinha uns amigos […]. [Eu] pedia a minha irmã para ir comigo ver se umas amigas estavam chegando. Nesse percurso, de muita árvore, tinha uma coruja de tamanho humano, a parte de trás era uma coruja e a parte da frente era uma mulher. Ela fazia o som da ave e falava a nossa língua, dizendo para nos protegermos, que aquele era o momento da folhagem. Nesse momento um monte de pássaros se embaraçava em nossos cabelos e eu tentava prender o meu cabelo. Ao sair daquele ciclo, ficamos cheias de penas e folhas no cabelo. Ao retornar, com as amigas que encontramos, para a roda do bar, começaram a aparecer vários redemoinhos pela cidade. E para nos proteger entramos no bar da esquina. […] Do alto, conseguíamos ver a cidade sendo ‘devastada’ pelos redemoinhos de vento. Eu fiz uma cabaninha de travesseiro para mim e para minha irmã, para nos proteger. […] mas o medo de morrer estava lá. Quando o redemoinho passou por nós, sobrevivemos. Muitas pessoas morreram e outras não. As que sobreviveram foram levadas pelos ministros do Brasil, eles seguiam a ordem do presidente Bolsonaro. Fomos colocados enfileirados, para fazer um exame de sangue, para ver nossa saúde. Eram muitas pessoas.”

Liz, uma mulher de 26 anos, escreveu, já no questionário da pesquisa, a primeira associação que lhe ocorreu: “Até as sensações corporais parecem muito reais. Perdi minha mãe há poucos meses e penso que pode ter relação a necessidade de proteger minha irmã e me proteger”. E não deixou de enfatizar profunda estranheza com o sonho, que se manteve vívido em seus pensamentos.

No dia da escuta do sonho, Liz encerrava suas férias e retornava ao trabalho, adaptado para home office. Estava em casa, com a irmã e o pai. Demonstrava preocupação com os avós, já idosos, durante a pandemia. Contou estar num processo psicoterapêutico em que o principal é o tema do adoecimento e da morte de sua mãe, alguns meses antes. Compreendendo que há uma diferença entre o texto escrito, encaminhado pelo questionário on-line, e o contar que vai se tecendo na temporalidade e na relação dialógica com um outro que ali está para escutar, solicitei que Liz recontasse seu sonho. Destaco a seguir alguns fragmentos das escutas das associações e produções de Liz.

Embora estivesse em terapia, ela não levou o sonho para as sessões com a psicóloga. Disse que não fez associações do que sonhou com questões “pessoais”, apenas com aspectos “políticos” (encontra o presidente, é levada com a irmã por ministros do governo para serem testadas etc.). E assim endereçou o sonho à pesquisa, sinalizando como contexto do dia anterior ao sonho “a situação política do país”, em uma mistura de medo e raiva pela forma “inumana” como a questão tem sido tratada pelo governo brasileiro: “Ainda que eu tome as medidas de segurança nesse momento, tenho receio de tudo o que tem acontecido, o quanto estamos recebendo informações verdadeiras, o quanto podemos confiar”.

Conforme contava o sonho, foi sublinhando o estranhamento e o impacto que lhe vieram diante da figura em tamanho humano, metade ave, metade mulher, pousada em um fio e que “fazia o som da ave e falava a nossa língua”. Disse não conseguir fazer associações entre a imagem da coruja e essas palavras do relato. Outro ponto que lhe foi marcante e que, segundo ela, produziu o efeito de fazê-la sentir-se protegida ao acordar e mesmo alguns dias depois: em meio ao perigo dos redemoinhos de vento, ela constrói uma cabaninha de travesseiros para proteger a irmã e a si mesmas. E repetiu o que disse nas associações do formulário: “acho que a falta da minha mãe me faz querer proteger mais minha irmã. Transferi a preocupação para ela”. Formulou a questão de a pandemia, a incerteza e o medo que ela traz estarem acontecendo justamente agora, quando “falta a pessoa que mais nos protegia”.

Com o significante proteção, retomei o ponto da mulher-ave que ficara sem associações, relendo essa figura como uma mãe-coruja. Assinalei especificamente a fala da mãe-coruja no sonho, marcando sua preocupação de que Liz e a irmã se protegessem. Liz pareceu surpresa com a associação. Compreendera, ao contrário, que o “protejam-se” dito pela figura que viu como ave-mulher era uma ameaça, não um apelo para que as duas filhas encontrassem abrigo. Entretanto, seguiu enunciando a necessidade de que elas protegessem uma à outra e também enunciando a permanência, durante a última semana toda, daquela sensação, inclusive física, do sonho: um sentimento de proteção – proteger a irmã, ser protegida por ela. Falou da mãe como sua “referência de proteção, cuidado e quem acolhe”.

O cenário político e social da pandemia forneceu a Liz alguns restos diurnos (as impressões de situações que aconteceram no dia anterior ou pensamentos e preocupações suscitados recentemente) que aparecem nas figuras de políticos, na necessidade de se abrigar, no desastre natural eminente – imagem recorrente em diversos sonhos da pesquisa. Restos que são algumas das matérias-primas para a (de)formação do sonho e que Liz não titubeou em associar ao contexto brasileiro e mundial. Mas não apenas isso. Além de fornecer esses materiais, o que se vive no cenário da pandemia traz à tona afetos ligados a insegurança, desorientação e incerteza, e ainda os intensifica e conecta de maneira singular à situação que Liz vive com sua família: a perda recente da mãe. 

A palavra mãe não apareceu no sonho nem em seu conteúdo manifesto, que foi tomado por Liz como “cheio de questões apenas políticas”. A partir do trabalho de elaboração em que se engajou, Liz fez girar a série de associações significantes que percebemos conectada aos significantes mãe e proteção, mantendo as intrincadas relações de identificação entre um e outro. O ponto que conecta a mulher-coruja à mãe fica oculto. Liz considera-se incapaz de associar o que quer que seja sobre ele. Mas desoculta-se com o apontamento do analista – não intencional – de que a mulher-coruja não era uma ameaça. A fala da mãe-coruja era um pedido preocupado e cuidadoso com suas filhas.

Liz contou que a mulher-coruja, possível simbolização da mãe falecida, fala “nossa língua”. Há aqui uma ambiguidade: a mãe-coruja fala “nossa” língua, a portuguesa, ou “nossa língua”, sua e de sua irmã? A língua falada pela mulher-coruja não é totalmente humana: “ela fazia o som da ave e falava nossa língua”. A língua da mãe-coruja carrega a marca da diferença: é nessa língua que Liz e sua irmã se comunicam com a ave e encontram proteção. Somente porque escutaram a voz feminina nessa língua não foram levadas, como os demais, pelos vários redemoinhos que assolam a cidade – a pólis, âmbito historicamente masculino. Na casa dentro da cidade, na cabaninha dentro do bar, Liz e sua irmã estão protegidas. Ao sobreviver, são submetidas à “ordem do presidente Bolsonaro”.

Na formação do sonho de Liz sacam-se de uma só vez dois movimentos: certo tratamento do desamparo e um trabalho de luto. O desamparo pode ser compreendido como a condição de estar sem ajuda, auxílio ou proteção. A essa condição convocada e intensificada pela pandemia, o sonho de Liz escreve uma elaboração para tal afeto ao presentificar e
pôr para funcionar, regressivamente, algo da mãe/proteção. Isso pode ser percebido pelo mapeamento de certo efeito de tratamento que o sonho produz em relação ao desamparo, ao medo e à insegurança. Esse efeito é marcado por Liz na sensação de proteção e cuidado que permanece com ela, até mesmo fisicamente, durante vários dias.

O segundo movimento que o sonho realiza é participar do trabalho de luto ainda em elaboração por Liz. Esse ponto ficou mais claro na segunda escuta. Disse que estava sonhando muito com a mãe, sempre mantendo a sensação de proteção. Relatou dois sonhos. No primeiro, caminhava por um campo e percebeu que estava com um documento de sua mãe, o qual precisava guardar. No segundo, um primo contou “sobre cursos pra fazer. E eu chorei lembrando da minha mãe, que seria bom pra ela […] mas ela não está mais aqui”.

Quando perguntei qual era o documento da mãe que ela carregava no sonho, respondeu imediatamente: “RG”. Ou seja, o que Liz tentava guardar era a identidade da mãe. Ela se emocionou muito ao escutar e fez uma pausa. Disse que seu maior medo era esquecer da mãe, seu rosto, a voz, o jeito. Esse era seu tema atual na terapia. O outro sonho se enlaça pelo mesmo viés e – poderíamos dizer até classicamente – realiza o desejo de lembrar da mãe, de não esquecê-la. No primeiro sonho, a língua da mãe, no segundo, a identidade da mãe: é o vínculo com a mãe que serve de espelhamento para o vínculo com a irmã. Esse vínculo não pode ser esquecido, mas sim redimensionado para a irmã. Aí, o pai não aparece.

O trabalho do luto compreende que, a partir da perda do objeto amado, uma a uma as lembranças e expectativas passarão por um superinvestimento e por um posterior e gradual desligamento libidinal, como descreve Sigmund Freud em Luto e melancolia. De início tudo parece remeter ao objeto ausente, tudo é medido pelo tamanho e é revisto em retrospectiva, mas aos poucos os interesses vão se conectando novamente a outros objetos, também amados. Esse processo não acontece sem alguma oposição por parte do sujeito enlutado, sem um reposicionamento do amor dedicado ao objeto que se foi. Todos esses passos compreendem um tempo e um trabalho de elaboração do luto.

Por isso, considero que os sonhos contados por Liz participam do trabalho do luto que ela ainda tece para lidar com a perda da mãe. Ao presentificar todo sentimento de proteção no primeiro sonho, presentifica-se algo dessa mãe, o que lhe dá certo prolongamento de vida. Os sonhos seguintes continuam articulando o tema do esquecimento e da memória da mãe. E terminam concluindo que ela não está mais aqui. Além disso, a ausência da figura protetiva é convocada e intensificada pela situação ameaçadora da pandemia. E haveria também um terceiro eixo que se conecta ao segundo (do luto) e que talvez possamos formular assim: diante do lugar vazio deixado pela ausência da mãe, o que fazer? A resposta que se esboça nas associações provocadas pelo primeiro sonho oscilam entre cuidar/proteger a irmã e a si e ser cuidada/protegida por ela – uma operação que não contemplou, ao menos na fala de Liz e nos sonhos, a entrada do pai na dialética de cuidado.

Do total de sonhos registrados na pesquisa Sonhos confinados em tempos de pandemia, cerca de 80% foram contados por  mulheres. Este  artigo integra o capítulo “Mãe, sonhei com você: contar o trauma”, cuja proposta foi discutir e analisar os sonhos contados pelas mulheres para o livro Sonhos confinados (Editora Autêntica), previsto para sair ainda no primeiro semestre de 2021.

CARLA RODRIGUES é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ, coordenadora do laboratório Filosofias do Tempo do Agora e pesquisadora da Faperj.

As escutas clínicas do sonho de Liz são do psicanalista Carlos Henrique de Oliveira Nunes.


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