Lutar anda impossível? Notas inconjunturais para o futuro
A leitura destas primeiras notas pode soar pessimista. Peço que não encarem dessa forma. São notas fotográficas do encadeamento triste dos acontecimentos que, de alguma forma, contribuíram para que chegássemos aonde estamos. Entre as paixões da assimilação e a recusa das condições de movimento, nós morreremos e temos transformado nossas lutas em formas de morrer: de tédio, de raiva, de incompreensão.
Parto da compreensão de que precisaremos recriar formas, alianças e corpos. Proponho revirarmos os escombros e limparmos o terreno. Este é um movimento necessário e oposto à pressa pela vitória. Desde a eleição de Bolsonaro nós perdemos, e a eleição de Lula não representa uma vitória contra as forças que nos derrotaram. Lula venceu Bolsonaro, mas a extrema direita e suas forças de morte seguem vivas e crescentes. Urge que lancemos nossa atenção aos escombros que ficaram para trás e com isso não incorramos nas mesmas estratégias de sempre, afinal, elas culminaram nesse estado de coisas.
Não há espaço para que sejamos os mesmos e façamos esforços iguais. A força que elege Lula nada tem a ver com um desejo de futuro, mas com um resquício de uma esperança do passado. Nesse momento, nada temos com o futuro, somos choradeiras lamentosas de um Brasil que não foi, cuja recordação se encarna em Lula e nos oferece algum alento. Mas o que virá depois? Não encontraremos outro Lula, figura desesperadamente alçada ao posto de salvador: não haverá outro porque ele pertence a um momento outro da política, diferente do que vivemos. Não haverá mais figuras tão transcendentais.
Não tomem isso como agressão política, por favor. Sou eu também uma eleitora de Lula. Contudo, me sinto no dever de lembrar que esse Lula não poderá fazer o mesmo de outrora, muitas de suas medidas operam no simbólico, como a criação de ministérios desejados pelo campo progressista, mas sem orçamento ou força. O campo progressista e democrático perdeu e as fabulações de vitória só nos enfraquecem. Lula é a melhora que antecede a morte em muitos pacientes.
O estridente atordoamento
Que nossas vidas estão em risco, já sabemos. Que os recursos para o desenvolvimento de projetos e ações de promoção da cidadania LGBTI+ serão cortados, é de se supor. Que o ódio social, acirrado pela extrema polarização, irá inevitavelmente nos atingir, temos ciência. Que sofremos uma derrota, não apenas eleitoral, disso também temos conhecimento.
Todos esses temores e essas tragédias têm sido anunciados e lamentados diariamente nas redes sociais, em eventos, debates, palestras, análises de conjuntura, conversas de amigos e tantas outras formas e meios que temos utilizado para externalizar a incredulidade repleta de dor que nos abateu no último período. Se tudo parecia, em algum momento, ir muito bem, nos defrontamos novamente com o risco da morte e com a fragilidade de nossas vidas, expostas ao ódio e a violência cotidianas. E apesar de nos dizerem que tudo está bem novamente, sabemos que não é bem assim. Seguimos morrendo, sob o teatro da vitória.
Que fazer? Essa é, em muitos sentidos, a questão que tem nos assombrado, a nós, militantes, ativistas, artistas, intelectuais, professores e tantos outros LGBTs engajados nas lutas sexo-gênero-dissidentes e também aqueles que agora, em meio ao furor da queda do céu, decidiram que é preciso constituir, inventar, tomar partido em formas de luta/resistência/militância. Contudo, experientes, novatos e atemporais, sentimo-nos, invariavelmente, sem rumo.
A vontade e a urgência de ação são tragadas pela desesperança, pelo medo, pelo individualismo, pela culpabilidade e pela polifonia ensurdecedora das opiniões que vociferamos nos muitos meios à nossa disposição. “A esquerda precisa aprender”, “o movimento LGBT precisa agir”, “o pessoal dos direitos humanos”, “o feminismo e as feministas’. Ou então, no extremo oposto, vibramos e sorrimos, levamos muito a sério a ideia de que “o poder nos quer tristes” e então dançamos e gritamos ensurdecedoramente, para mostrar para “eles” que continuamos vivas e felizes. Ainda que nem tão felizes assim e nem tão vivas.
Seguimos nomeando abstratamente sujeitos coletivos desincorporados, aos quais direcionamos nossas mais severas críticas, como se em nenhum momento ou sob nenhum aspecto tivéssemos nada com isso. Entre a estridente busca de culpados e a louca euforia do “eles não podem nos fazer tristes”, seguimos sem saber o que fazer, abafando com nossos gritos, risos e gemidos, as interpelações do real em busca de nossa força imaginativa.
O encantamento da bonança: Estado e empoderamento
Temos encampado muitas lutas há muito tempo. Os últimos anos, ao menos simbolicamente para LGBTIs pareciam, no primeiro plano, repletos de avanços. Reconhecimento institucional das demandas, editais, presença no aparelho do Estado, lugares no Governo Federal e nos governos subnacionais. Conferências. Decretos. Espaço para diálogo. Tudo isso esteve lá, ainda que apenas para os ingleses verem e as mortes de LGBTIs continuassem acontecendo sem registros, sem reconhecimento, sem rosto, sem advocacy.
Desfrutamos uma arrasadora paixão pelo Poder Judiciário e com isso provocamos o Supremo Tribunal Federal (STF). União Estável. Casamento. Mudança no Registro Civil de pessoas trans direto no cartório. Avanços fundamentais, defendidos por muitos e muitas de nós. Eu mesma, em 2010, participei em Brasília de um grande abraço coletivo ao Palácio do STF. Estávamos mesmo apaixonadas por esta lufada de cidadania.
Na cultura também avançamos: beijo gay, família homoparental, novelas com personagens e atriz trans. Cantoras e Cantores transexuais, travestis e drag queen. Nos elevamos como um tsunami nas redes sociais. Páginas de ativismo e grupos. Conexões múltiplas. Nos dividimos entre as muitas estratégias, entre os muitos conflitos. Problematizamos as nossas relações ao extremo. Nada poderia passar. Absolutamente nada. O tempo era de pedir tudo e pôr tudo abaixo. Estávamos finalmente, empoderados, ainda que continuássemos morrendo.
Ebriamente empoderados, dever-se-ia dizer. Das margens do desejo e de alvos da violência, negociando muito bem a nossa perversidade, acessamos, ainda que marginalmente, os centros de poder. Não mais dentro de armários, mas muito bem-vestidos, certamente. Às vezes muito coloridos, as vezes engravatados, as vezes falando pajubá e ,as vezes, usando charmosos termos em inglês, tão na moda no mundo dos empreendedores.
Fizemos nossas pautas e vozes visíveis. Não apenas na Parada LGBT, na Avon ou com os Doritos, mas nas redes sociais, no nosso diário e incansável web-ativismo, nos tornamos centenas de milhares de híbridos: celebridade-ativista, celebridade-ativista-modelo, celebridade-ativista-formadora de opinião, celebridade-ativista-acadêmica. Milhares de seguidores. Compartilhamentos. Likes. Dispensamos coletivos, partidos, ONGs e todas estas organizações e instituições que nos pareciam tão fora de moda. Livres. Individuais. Liberais. Empoderadas e cheias de opinião.
As cisões, a gagueira e os engasgados
“Estes movimentos organizados, são puro carreirismo” diziam alguns dos híbridos-ativistas. “Não podemos confiar no Estado. Temos que destruir o cis-heteropatriarcado.” Essas novinhas aí, mal sabem o que vivemos na ditadura”, “só ficam na internet e nas universidades”, respondiam os primeiros das ONGs, dos aparatos do Estado. Uma das muitas cisões nas formas de lutar se desenhava. De um lado, a experiência e o traquejo no seio do Estado dos mais velhos, de outro, a visibilidade e acesso à informação dos mais novos. Farpas trocadas de lado a lado, mas não as únicas nesta peleja: empreendedores, startups, empresas gayfriendly. Identitários e pós-Identitários. LGBTs e queers. Humanos e monstros. Deusas e ciborgues. Liberais e socialistas.
Repetíamos prazerosamente a gagueira do “ou isso ou aquilo”. Transformamos as lutas em carreira, em modo de vida e fomos longe. Esquecemos, contudo, que empoderar, no sentido de tomar parte no poder que constitui o mundo, o reconhecimento e a cidadania, é muito semelhante a tomar veneno. Trouxemos, para a composição de nosso desejo por vida, a forma de poder que tem incessantemente produzido a nossa morte, com isso, constituímos nossas dinâmicas à imagem e semelhança das que nos excluíram, produzindo, entre nós, competição, enfraquecimento, culpabilidade, belicosidade. A sede por direitos às vezes nos deixa a boca de tal forma aberta, que não atentamos para tudo que pela goela nos desce. Estamos engasgados e continuamos morrendo.
Assombradas observamos o avanço da extrema-direita e do conservadorismo. Os barulhentos pastores, alvos frequentes do nosso riso, assaltaram o poder em nosso país. Os milicos conservadores. O baixo clero do Congresso Nacional. Todas essas assombrações possuíram nossa sociedade.
De onde veio tanto ódio? É uma reação aos nossos avanços, pensamos. De certa forma. Contudo, onde estávamos nós que não conseguimos aplacar, com todas essas conquistas, nem um pouquinho desse conservadorismo virulento que se mostra agora, mas que não é novo e nem desconhecido para nenhum de nós? Para quais audiências estávamos falando?
Não se trata aqui de distribuir culpas. Essa categoria, fundante do punitivismo, não tem nada a nos dizer. Trata-se de que possamos, frente a esse estado de coisas, revisitar os lugares pelos quais passamos e tentar perceber aquilo que nos passou invisível e que, de alguma maneira, nos permita reduzir os abismos e as fronteiras com as quais somos obrigados a conviver agora. Sejam os abismos entre nós, sejam aqueles que nos distanciam dos “eles”, aos quais gozosamente chamamos fascistas.
Frente à óbvia justeza de nossas pautas, pensávamos, nada tinha para ser dito. Armadilha da moralização. Ilusoriamente acreditamos que deveríamos convencer apenas o Estado, afinal, é onde está o poder. Ele nos garantiria segurança. Ingenuamente esquecemos que o Estado manifesta-se no mundo através dos governos, que refletem, em alguma medida o ethos social. Convencer a todos? Para quê? Não são óbvios os nossos direitos, quem a isso se opuser só pode ser fascista. Fascistas não passarão! E passaram, os de fato e os de ocasião. Passaram e, sem nada ter dialogado com ninguém, assaltaram o poder. Somos Cassandra e não dispomos mais de nenhuma credibilidade.
Com nossas palavras de ordem gastas. Com nossas performances paradoxalmente cristalizadas em muitas tradições. Frente à incapacidade representativa do conjunto dos nossos “movimentos LGBTs”, que, em dado momento, transformaram suas reivindicações na totalidade da vida dos sujeitos pretensamente representados, resta-nos o melancólico apego às zonas confortáveis e conhecidas, ainda que infrutíferas, das formas e modelos de sempre. As mesmas palavras gastas. As mesmas bandeiras esgarçadas. A mesma eterna cantilena, profundamente maniqueísta. Seguimos morrendo.
Fim da parte I.
Helena Vieira é escritora e transfeminista.