A liberdade de expressão saindo pela porta dos fundos?
Imagem do filme 'A Primeira Tentação de Jesus', especial do Porta dos Fundos. (Foto: Divulgação)
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados pelos leitores são publicados de acordo com um tema. O de janeiro de 2020 é “liberdade de expressão”.
Por Bruno Antonio Barros Santos
No dia 8 de janeiro, o desembargador, Benedicto Abicair, do TJ/RJ, determinou a suspensão da exibição do especial de Natal A Primeira Tentação de Cristo, promovido pelo grupo de humor Porta dos Fundos, na plataforma de streaming Netflix. Em resumo, a polêmica foi o fato de Jesus ter sido representado como homossexual, além de um triângulo amoroso entre Maria, Deus e José.
Movido pela curiosidade, assisti a esse especial de Natal, que foi uma sátira (diferente de blasfêmia), e não gostei, embora o Porta dos Fundos tenha outros vídeos satíricos excelentes. Assim como eu, tantas outras pessoas também não gostaram desse especial de Natal. Alguns cristãos mais fervorosos ficaram revoltados e passaram a fazer coro à “censura” do vídeo. Atitude compreensível, claro, mas é preciso problematizar a situação para não cairmos nas armadilhas do perigo da “censura”.
Inicialmente, é necessário entender que o fato de alguém não gostar de algo não implica dizer que todos devam deixar de gostar. É muito difícil haver homogeneidade dentro de um determinado grupo. Este não é um bloco monolítico. E essa suposta unanimidade ou esse ilusório consenso não existe nem no meio cristão. Inúmeros cristãos, inclusive líderes religiosos, posicionaram-se contra a suspensão judicial da exibição do filme do Porta dos Fundos.
Exatamente aqui é que mora o perigo de o Judiciário determinar se o vídeo humorístico deva ser veiculado ou não, pois é muito difícil estabelecer um critério claro para definir uma decisão nesse sentido, o que pode redundar num subjetivismo autoritário, pelo grau de indeterminação do conteúdo, além de proporcionar um precedente para futuras proibições e suspensões abusivas. Para isso, lembremo-nos dos inúmeros exemplos de perseguição à arte em períodos autoritários da história.
No caso concreto, como bem lembrou o jurista George Marmelstein, não há, no especial de Natal do Porta dos Fundos, nem propagação de discurso de ódio que estimule a violência nem aplicação do fenômeno da “captive audience”, ou seja, as pessoas têm a opção de assistirem ou não ao vídeo, já que o especial está na Netflix e assiste quem quiser. Marmelstein finaliza dizendo que, na verdade, a “censura” provoca o efeito contrário, na medida em que as pessoas passam a ter enorme curiosidade de ver o que foi proibido e, por isso, provocou toda a polêmica: é o conhecido “efeito Streisand”.
Então, se não há discurso de ódio, por que muitos cristãos ficaram revoltados? A professora Elza Maria D’Athayde, na sua interessante dissertação de mestrado, aborda o humor nas charges, enfatizando a utilização do humor como uma “função desestabilizadora de sentidos”, além de o humor, enquanto manifestação discursiva, “revelar o interdito, o não-dito, o ideologicamente silenciado”. Como diz a professora, retira-se a pretensão de neutralidade da linguagem e se coloca essa linguagem além das evidências, isto é, como algo de “rebeldia e desmascaramento”.
O humor também é político. O humor é transgressor. O humor é provocativo. O humor é questionador. O humor é subversivo. O humor constrange as estruturas dominantes do poder. O humor é ruptura. O humor gera desconforto e estranhamento. O humor é exagero. O humor não é refém da ideia de pecado. O humor subverte regras sociais e costumes estabelecidos. O humor não combina com o policiamento no uso de palavrões. O humor é livre nas representações. O humor emancipa. O humor transcende. O humor não cabe numa caixinha fechada que eu defino para chamar de meu.
Nesse sentido, o uso da linguagem empregada no humor do especial do Porta dos Fundos, obviamente, não é neutro. É uma sátira a modelos dominantes de crença, a estruturas hegemônicas do poder, que não correm qualquer risco em relação ao pleno exercício da liberdade religiosa, num país majoritariamente cristão. Diferentemente do conhecido menosprezo social de várias pessoas, em relação às religiões afro-brasileiras, que são demonizadas e, muitas vezes, têm seus terreiros invadidos e seus religiosos agredidos e ameaçados. Ademais, aqui reside um aspecto contraditório: várias pessoas que apoiaram a “censura” contra o filme do Porta dos Fundos são as mesmas que vociferam contra o “politicamente correto”, para fazerem piadas contra gays, lésbicas, transexuais, negros, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, entre outras minorias e grupos vulneráveis.
Desse modo, embora a liberdade religiosa envolva a questão do sagrado, no caso do vídeo do Porta dos Fundos, o humor é dessacralizado, não tendo, portanto, a obrigação de retratar fiel e sagradamente o que diz a Bíblia. É nessa liberdade de expressão artística que entra a imaginação, com diferentes narrativas. É nessa liberdade, também, que, artisticamente, a cruz de Cristo pode ser habitada por uma transexual para simbolizar a violência do país que mais mata transexuais no mundo. Isso porque, na arte, sexualidade não é tabu e, várias vezes, há representações que servem como reflexão e crítica social, subvertendo a simbologia de poderes que oprimem.
Portanto, a arte é transgressora. Imaginemos, pois, o impacto do quadro “Jardim das Delícias Terrenas”, de Hieronymus Bosch, no século XVI, época em que começava a colonização do Brasil pelos portugueses. E, da mesma forma provocativa e transgressora, os polêmicos quadros do século XIX: “Saturno devorando um filho” e “A Origem do Mundo”, respectivamente, de Francisco de Goya e de Gustave Courbet. Não faz sentido, destarte, hoje em dia, tentar-se enquadrar e disciplinar a arte como se fosse algo a ser controlado por um tutor moralista.
Assim, num ambiente democraticamente laico, é perigoso normatizar e institucionalizar o humor, a partir de uma pulsão inconfessavelmente moralista e, por vezes, autoritária, oriunda de uma lente não plural de mundo. O grupo de humor Porta dos Fundos já fez inúmeras sátiras nos seus vídeos, inclusive com as 3 religiões monoteístas de maior número de fiéis no mundo (cristianismo, islamismo e judaísmo). E é bom que continuem produzindo, como forma de tornar a vida mais paradoxal. Ninguém é obrigado a assistir. O cardápio de opções da Netflix é vasto e tem vídeos para todos os gostos. E viva a liberdade de expressão artística!
Bruno Antonio Barros Santos tem 35 anos e é Defensor Público do Estado do Maranhão.