Espaço negativo

Espaço negativo
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


“O homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar dor e/ou prazer, e outros animais a possuem, mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto.”

Inicio essa crônica com uma fala de Aristóteles. Não por querer divagar nas teorias filosóficas de um “isolamento físico”, nem com o intuito de querer permear a necessidade de compartilhar, se conectar e conversar em um momento que não podemos tocar um ao outro.

Começo com Aristóteles por que passei a entender como a fala é uma forma de ser visto. Em uma das noites de insônia, pensando sobre as consequências de uma “gripezinha” que não consigo entender completamente, me peguei me perguntando o que fazia de mim, eu.

Enquanto a noite entrava com seu silêncio ensurdecedor e o céu escuro brilhava uma luz fraca da lua, me peguei encarando aqueles espaços vazios entre estrelas. Aqueles que um dia nós conectamos quando criança como em um jogo, mas que depois aprendemos estarem a milhares de quilômetro de distância um dos outros. Vi no brilho suave das estrelas, na extensão em que percorriam por toda a galáxia; e bom, não acho que cheguei a nenhum tipo de conclusão além da óbvia.

Não eram as minhas experiências individuais que fazem de mim, eu. Nem as coisas que possuo, nem os pensamentos que deixo encaixotados na minha cabeça. Na verdade, eram os olhares das pessoas ao meu redor. O ex-namorado que terminou comigo porque eu era egocêntrico. O chefe para quem revirava os olhos por ser racista. Os colegas de trabalho que faziam tarde monótonas se tornarem imperdíveis. As amizades no colégio que eu esqueci. O grupo da faculdade que eu mantive próximo. Os encontros casuais para conversar sobre nada. Conversar sobre tudo.

Foi ali onde eu me vi. Nos espaços negativos entre o “eu” e o “outro”. Onde eu podia ser. Um lugar em que apenas eu poderia ser eu. Uma infinidade de pessoas pode enfrentar um mesmo problema, mas todas elas irão tratá-lo de forma diferente. O que há dentro de nossas cabeças é pouco comparado ao que podemos fazer com esse tanto de informação.

Pensem só, estamos em uma era onde a necessidade e vontade de arranjar um psicólogo está cada vez mais presente. Pagar alguém para conversar, em resumo. Indo muito mais a fundo, pagar alguém para poder existir durante uma hora, uma hora e meia.

Bom, parece mais um daqueles casos onde suprimir o “invisível ao olhos” é quando se percebe a falta que faz. Mesmo que antes de todo esse colapso, onde o que mais vemos são as paredes de nossos quartos, já vivêssemos enclausurados em nossa bolha; só a possibilidade de não poder tomar um banho de sol despreocupado com um amigo já é algo desanimador.

Mas se há algo mais além de eu e você nesse espaço negativo, é a possibilidade. Criamos aplicativos e inúmeras formas de nos conectar uns com os outros. Arte, literatura, cinema, música, tudo isso para preencher esse espaço vazio onde ainda não somos. Tudo isso está lá e continuará lá depois da crise. Esperando por um aconchego. Esperando por uma normalidade que nunca existiu.

Junno Sena, 23, é escritor, ilustrador,  jornalista e mestrando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

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