Literatura em luta

Literatura em luta
A literatura seria hoje, quem sabe, o nome desse campo expandido da ficção, um meio real-virtual, aparentemente sem foras( Foto: Robert Anach/Unplash)

 

Você conhece a cocada mole?

Se você não conhece, venha conhecer

Aqui tem a cocada mole

Temos cocada de vários sabores
Temos cocada de leite condensado e côco
Temos cocada sabor côco
Temos cocada sabor abacaxi
Temos cocada sabor cereja
Temos cocada sabor ameixa
[…]

A nossa cocada é de côco mesmo
Não é como essas que se vêem por aí, que são puro açúcar
[…]

A novidade é a cocada de milho verde
É uma delícia
[…]

Veronica Stigger, Gran Cabaret Demenzial, 2007

Muitas vezes, a teoria e a crítica parecem mover-se como Aquiles atrás da tartaruga, de acordo com Zenão de Eleia: por mais que corram atrás dos fenômenos culturais, estão fadadas a um atraso irremediável, e isso por mais lentos que tais fenômenos aparentem ser. É como correr atrás do prejuízo, como se diz.

Isso também poderia ser afirmado da seguinte maneira: o mundo da cultura é tão complexo, parece ser ele mesmo, de fato, tão ficcional, com sua pluralidade de visões, vozes e realidades, que enfim a teoria e a crítica apenas com alguma demora conseguem propor leituras – que não raras vezes parecem ser tão complexas e ficcionais como todo o resto.

Pode parecer estranho, mas o que escrevo é um elogio: aos indomesticáveis fenômenos culturais, por assim dizer, mas também à sua crítica e à teoria. Afinal, quem se dedica às leituras da cultura deve recorrer, diante de uma situação como a descrita, a conceitos elásticos, tão plásticos ou criativos como são os seus, assim chamados, “objetos de estudo” (filmes, fotografias, esculturas, músicas, eventos, textos, quadros, quadrinhos, manifestações de rua, memes, tweets etc.).

Hoje, uma das noções mais elásticas – creio eu – é justamente a de literatura: com desenvoltura, ela abrange todo um universo que é radicalmente heterogêneo e, desse modo, mostra-se capaz de incluir até o que, a rigor, seria avesso a ela. Nesse sentido, perguntar o que é literatura é armar imediatamente um impasse, já que há tempos a literatura tornou-se estranha a si mesma, isto é, em seu campo muito ampliado, ela igualmente diz respeito, e talvez cada vez mais, ao que não é, ao que não seria, a priori, literatura.

Mas a situação se complica ainda mais, pois nem o mundo nem a literatura funcionam de acordo com polarizações que podem ser resolvidas em termos simétricos e excludentes: enfim, nos termos do que é ou do que não é. Valeria dizer: se a literatura parece não ter fora, ou ainda, se a literatura parece ser aquilo que empurra continuamente uma identidade positiva (o que é) em direção ao seu limite, isso não significa levá-la ao simples oposto, ou seja, ao seu negativo (o que não é), mas sim a uma diferença de outra ordem, mais resistente, uma diferença não apaziguável, quem sabe irredutível.

Em poucas palavras, diria que, contemporaneamente, a literatura nem é nem não é; mas, podendo eventualmente ser ambas as coisas, sem dúvida pode ainda ser outras mais, de maneira que ela, a literatura, sobretudo é-não. Cocada mole: sendo de côco mesmo, e de inúmeros sabores mais, pode inclusive ser de milho verde.

Mas não chegaríamos a essa situação contemporânea a não ser por meio de uma história intrincada, que coincide com a modernidade e, sem dúvida, é marcada pela política e suas batalhas. (Como sempre, aliás, já que, ao menos desde Platão, artes e política se tocam intimamente).

No período que se estende, aproximadamente, dos anos 1970 ao final da década de 1990, processou-se no Brasil a instalação de um rigoroso debate a respeito da dissolução dos limites da literatura e da sua autonomia. Nesse cenário, Silviano Santiago, Leyla Perrone-Moisés, Haroldo de Campos foram, como sabemos, algumas das figuras proeminentes, logo aclimatando em nossos trópicos – no entre-lugar do discurso latino-americano – uma série de problemas levantados pelos teóricos do estruturalismo francês, do pós-estruturalismo e da desconstrução. Na Argentina, algo similar acontecia, tendo à frente Beatriz Sarlo, Ricardo Piglia e o periódico Los libros (sobre isso escreveu Jorge Wolff, em Telquelismos latino-americanos, de 2016)

Noções como morte do autor, discurso, rede, diferença, disseminação, escritura, entre outras, devem sua pregnância à proficuidade desse debate, que em certos aspectos encontra-se ainda distante de uma resolução. Em linhas gerais, poderia ser dito que o front das batalhas teóricas do período era tensionado, por um lado, pelos defensores da canônica, mas algo abalada, literatura comparada e, por outro, pelos então ascendentes propagadores dos chamados estudos culturais.

Interrogava-se, não sem receio, a respeito dos limites das “literaturas nacionais” (e seu protocolo de viés universalista-comparatista) e em que medida o diagnóstico a respeito do declínio da arte corresponderia aos prognósticos da ascensão da cultura em escala global (referência é o livro Declínio da arte/Ascensão da Cultura, de 1998). Confrontada com a reconfiguração dos mapas geopolíticos e acadêmicos, segundo a nova ordem mundial diaspórica, descolonizadora e pós-1989, a literatura comparada teria diante de si, nesse sentido, uma dupla tarefa: a reconfiguração do seu objeto de estudo, que enfim se mostra convulsionado e irredutível à assimilação; assim como a transgressão dos seus próprios pressupostos e limites.

Isso porque o pressuposto básico do comparatismo é a existência de fronteiras. O que impulsionou os estudos comparatistas foi, por um lado, o fechamento identitário dos Estados-Nação modernos, isto é, a definição dos escritos e dos escritores que melhor encarnavam o espírito de cada nação; por outro, foi um impulso de negociação e de remuneração do que haveria de imperfeito, de restritivo ou de empobrecedor nas particularidades. Como escreveu Antoine Compagnon em O demônio da teoria, em sua configuração moderna, vale dizer, inseparável do romantismo e da “afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom-gosto”, “a literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais”

Nesse sentido, a literatura moderna parecia designada a transitar entre o destino bélico e o comércio dos Estados-Nação. Em “Liminar”, texto de 1998 (publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 4), Raul Antelo anotava: “em última análise, a literatura comparada é a teoria da guerra”. Com ela se estimulou a concorrência, mas também os fantasmas do perigo externo, do contato e do contágio. Noções como as de influência, imitação, originalidade, basilares nos estudos comparatistas canônicos, deixavam subentendida a subalternidade e eram, em boa medida, sustentadas por premissas da história positivista do século 19.

Mas o desafio ao comparatismo se inicia quando passamos do estudo dos limites ou fronteiras para a análise situada e diferencial dos limiares. Para voltar ao problema apontado acima: se o risco, ainda que efeito colateral, dos estudos da cultura seria o de harmonizar a guerra nômade neste presente multicultural do mercado de capitais e investimentos a curto prazo, o risco do comparatismo em seu modelo canônico, por sua vez, seria o de imobilizar essa mesma guerra, investindo a longo prazo na tradição autonomista e identitária.

Passadas as batalhas desses anos (e iniciadas outras, igualmente árduas), talvez o saldo positivo recaia no fato de que, hoje, tornou-se insustentável postular um entendimento valorativo da literatura (das artes) que a isole, de maneira talhante, dos demais fazeres da linguagem. No presente, felizmente, em cursos de Letras e sobretudo em programas de pós-graduação em literatura, não há a rigor uma hierarquização, um juízo de valor a priori. Em sintonia com uma estética generalizada com a modernidade, uma estética disseminada no mundo e nos tempos, mas capaz de singularizar quaisquer elementos, nesses espaços é possível estudar criticamente os modernismos e igualmente o funk; Proust e ainda tuítes; o pensamento ameríndio e a epopeia; Platão, a realidade virtual e a lógica das fake news; o teatro de Shakespeare, a arte drag, o cinema novo; a perspectiva renascentista, a fotografia, o graphic novel, o grafite, o pixo etc.

Talvez tenhamos entendido que a “realidade” do mundo não é tão concreta assim: que ela demanda um trabalho de elaboração nada contrário ao que chamamos de ficção. Pois a ficção não significa, apenas, uma espécie de imitação do que está posto (uma imitação em geral valorizada, se proposta como sinônimo de literatura ou arte, mas suspeita e sujeita a diversos controles quando aproximada do fingimento, da imaginação mentirosa ou potencialmente “subversiva”). Com efeito, em sua etimologia, ficção abrange um campo semântico mais generoso: remete também a composição, ou seja, significa moldagem, modelagem, o que quer dizer que ficcionar é uma forma de criar. Para além de qualquer campo restrito ou autônomo, a ficção atravessa outras formas criativas, circula como e com elas, com todos os variados trabalhos que compõem, constroem, moldam esse mundo que enfim compartilhamos.

Há ficção na história, assim como há ficção na política; há ficção no direito e, também, na arquitetura; há sem dúvida ficção na culinária e, a seu modo, na moda etc. Literatura seria hoje, quem sabe, o nome desse campo expandido da ficção, um meio real-virtual, aparentemente sem foras, compondo o que Josefina Ludmer nomeou, no início dos anos 2000, em seu breve ensaio “Literaturas pós-autônomas”, como a fábrica do presente, ou seja, a imaginação pública.

Afirmar isso é um modo de anunciar o enorme trabalho ainda a ser feito, principalmente quando pensamos no que se cria, no presente, nesse grande cabaré demente da política, e na importância, portanto, de organizarmos uma crítica, uma outra ficção, ou seja, a importância de criarmos uma alternativa para nossa vida em comum. Com vários sabores, o carro da cocada mole ainda está para passar.

Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição


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